Paris não é uma festa
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 10 de dezembro de 2012.
Hemingway dizia gostar de ir de barriga vazia ao museu do Jardim de Luxemburgo para admirar as telas de Cézanne. Assim, assegurava, encontrou o melhor modo de compreender como o artista pudera pintar suas paisagens. Ele certamente também estava tomado de alguma espécie de fome, pensava Hemingway com seu jeitão selvagem de emitir opinião. Na mítica Paris dos anos 20 celebrava-se loucamente o fim da grande guerra e pessoas de todas as partes procuravam a cidade a fim de reconstruir o mundo e as artes. Tinham a fome e os tormentos de um mundo para construir. A Europa atual, pela primeira vez em um longo período sem guerras totais, anda desconfiada da própria alma e mais ainda de que a razão possa redescobri-la. Prisioneiras dos códigos do confronto que imperam no mundo da política, as nações e seu povo, quando vistas em mostras e exposições, acabam melancólicas fotografias do mal de viver. Quem se dá conta do quanto de sofrimento anda espalhado pelas salas e as paredes de um museu?
A atual mostra do pintor americano Edward Hopper no Grand Palais está batendo todos os recordes de visita na capital francesa. Está mais frequentada do que as anteriores retrospectivas de Picasso e Monet e mesmo do que a atual de Dalí no museu Georges Pompidou. Os franceses e os turistas têm demonstrado maior fascinação e interesse pelo realismo triste, pessimista, frio, melancólico, cansado e solitário do grande pintor americano. Todos certamente com suas vidas materialmente bem cheias, inundados de aparelhos que falam, ouvem, fotografam e filmam, sem nenhum problema para resolver pelo diálogo, seguros de poderem encher a barriga quando sentem vontade, sem nenhum receio de perderem o que não pode ser tirado, os milhares de indivíduos que percorrem as salas, sob a grande estrutura de vidro e aço do Grand Palais, ficam estatelados, ensimesmados frente ao silêncio das telas. Que ora mostram um farol numa costa deserta, um posto de gasolina sem funcionários numa estrada marginal, ora dão a ver uma garota sozinha tomando café num bar envolto pela noite ou uma mulher com o olhar perdido sentada na cama ao lado do companheiro que dorme. O imaginário de Hopper raramente representa mais do que um pequeno punhado de pessoas. Raros também são os diálogos, enquanto que há uma profusão de cenas de quarto onde as pessoas, normalmente mulheres, encontram-se inapelavelmente sós. Talvez seja essa ruina de estar só, ainda que acompanhado, e esse profundo sentimento de desolação que atraíam tantas pessoas. Esse realismo que de tão real torna-se estranho e fere. Em um mundo que está cada vez mais massacrado pela onipresença midiática e os estímulos visuais mais diversos de violências, opulências e balbúrdias, a arte de Hopper é mais chocante do que o cubismo ferino de Picasso e as extravagâncias surrealistas de Dalí. Nesse mundo, a inelutável verdade escondida não é o horror em Guernica ou os sonhos bizarros com rinocerontes cósmicos, antes é, cada vez mais, a desolação, com aparência de meditação, que teima em acompanhar as pessoas apesar de terem aparentemente “tudo”. Lembrança que vem num olhar estático ao menos quando estão sozinhas em seus quartos. Uma angústia que não cria força para a vida. Força nem para destruir, nem para criar. Mas que permanece estável e silenciosa. Sempre incômoda, mas acomodada.
Para além do clichê, vivemos mesmo em um mundo moderno materialmente pleno, mas espiritualmente vazio. E com pouca fome para se criar algo novo ou delirar na criação de alguma forma de arte. Se isso não é uma verdade completa naquelas partes do mundo onde subsistem tantos problemas materiais e imediatos, é, por outro lado, talvez, a grande chaga das cidades opulentas atingindo seu ponto de fastio.
A Europa e o mundo desenvolvido de maneira geral – mas também os cantos ricos do mundo emergente – estruturam-se em sociedades cada vez mais excludentes e excluídas. Ao se fortificarem para excluir os outros, excluem a si mesmos. E essa lógica, forjada coletivamente, vai até o limite do indivíduo. Até a solidão do quarto.
Hopper esteve em Paris por bastante tempo no início do século XX, antes da I Guerra. Depois de 1910 nunca mais retornou à cidade. Nessa retrospectiva, em que sua obra volta a Paris um século após a partida definitiva do pintor para os EUA, a capital francesa recebe 160 telas, muitas das quais mostram cenas que se tornaram ícones de aspectos da vida americana moderna. O sentimento de desamparo das telas faz aumentar o silêncio do movimento das filas dos que as observam no museu. O que parece é que na vida a paz continua sempre mais perseguida do que desfrutada. Mesmo nos períodos em que não há guerras mundiais.
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PAULO DELGADO é sociólogo.