Pastores na tormenta

O Estado de S. Paulo – 13 de julho de 2022

A chave do cidadão não está virando bem na fechadura das instituições. A escalada da ambição mundana manipula a fé de forma profana, o Parlamento ludibria a Constituição e a violência começa a visitar as eleições. 

Há, no Brasil, uma ordem constitucional que identifica um regime democrático, mas não há uma ordem cultural, um costume provido de um sentimento que caracteriza plenamente a democracia. As elites do poder não se sentem constitucionalmente iguais aos brasileiros, que acabam resignados a Deus-dará. 

Políticos, ministros, juízes, procuradores, militares e policiais deveriam cumprir com seu dever atuando nos seus lugares de forma exemplar. Por mais preparados, motivados e articulados que se sintam, não podem seguir impondo doutrina própria, conceitos corporativos, sem conectividade social. O rapapé entre o Executivo e o Legislativo está desconectando a política das regras legais como moinhos viciados que se movimentam pelo vento de si mesmos. 

Caneta, arma, querer é poder são falácias de força. Cegueira do topo querer se sustentar tirando a grandeza da posição hierárquica que é respeitada se aceita a contraparte de controle que a limita. Barganha, arbítrio, isso diminui a capacidade de ação democrática ao criar conexões e camuflagem entre governo e oposição. 

As leis não são madeira para queimar. A maioria dos empresários e dos trabalhadores clama por um governo estável, amigo de regras, contratos, tratados, acordos à luz do dia. A minoria, amiga do usufruto de governantes, tem sido mais influente e tolera solavancos, as improvisações, pois sua forma de proteção não é a Constituição. 

A desinstitucionalização geral é uma das armas combinadas da má-fé, patologia da ambivalência. Faz chantagem com a necessidade social, não apura delitos e projeta um Jesus partidário, sem ênfase poética e espiritual. Carestia, inflação, violência política, improbidade, guerras de religião – o Brasil precisa estar em mãos capazes de tornar as coisas mais bonitas para nosso povo. O mundo do progresso exige um projeto de nação em que o cidadão possa viver segundo suas próprias convicções, sem a defesa violenta de ideias ou a pressão transgressora de ninguém. 

Se a Califórnia decide que contra roubo de até US$ 100 a polícia não está autorizada a agir, reconhece o fracasso das políticas de proteção social no país mais rico do mundo. Enquanto isso, aqui, a mistura de religião e política consolida a decadência do Estado Social de que nem mais Deus duvida. 

Os erros se agravam quando evangélicos aceitam que o escotismo e o emotivismo interesseiro da política interfiram nas controvérsias morais das igrejas. A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes. Nem tem titularidade para se meter no direito de livre prática da fé para se beneficiar do seu uso como autocracia teológica. 

Administrar seus próprios assuntos é o princípio de um sistema justo em que cidadãos livres toleram a objeção de consciência, não aceitam o preconceito nem se acham pessoas especiais, únicas e isoladas. Estados confessionais e governantes que usufruem de igrejas como bureau eleitoral não governam para iguais. A mesma limitação de competência se exige do Estado laico, se quer assegurar a liberdade de crença. 

A defesa da equidade dirige-se aos princípios da justiça coletivamente partilhada, e não a discussões sobre verdade e transcendência. Se as premissas da consciência são fundamentadas na fé, as da justiça social o são na evidência, na liberdade e na igualdade. Se um religioso se corrompe e não é atormentado na sua fé, deve estar certo de que só há salvação na sua igreja. Quando enfrenta a doutrina do Estado de Direito, invoca o princípio da tolerância religiosa com um ardil. Advoga que seus fiéis é que devem separar o joio do trigo, pois não pode ser réu quem serviu a um Estado enganadoramente laico. 

Melhor confessar, se arrepender. Evite o anátema, pois, neste caso, amar a justiça não significa odiar a Deus. Confie na salvação também fora da igreja.

A igreja reformada deveria estudar melhor a história do protestantismo, as revoltas e os dogmas que o formaram. E reler Martinho Lutero, que dizia que todo homem odeia a verdade, especialmente se diz respeito a ele. 

Em todas as religiões ou entre ateus e agnósticos existem cidadãos exemplares. A espiritualidade ajuda muito a maioria das pessoas, a constitucionalidade ajuda todos. A intolerância a artigos de lei enfraquece os argumentos na defesa da tolerância aos artigos de fé. 

Quem se acha perfeito costuma exigir pouco de si mesmo. O poder oferece sucessivas distrações, e uma das mais graves diz respeito à confusão entre a ética das relações privadas e a das relações públicas. A ética diz respeito ao ato de fazer em si mesmo. Se o ato original é imoral, suas consequências se completam.

Na vida pública, quem tergiversa pode se encontrar com a fatalidade do julgamento de seus atos. Se escapar, que se acerte com seus deuses para não ter uma velhice cheia de litígios com a consciência.

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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