Permanências argentinas

Correio Braziliense e Estado de Minas – Domingo, 18 de setembro de 2011.

Os foguetes lançados pela Argentina contra seus inimigos na Guerra das Malvinas não chegavam ao seu destino. Fabricados pelos franceses, os mísseis Exocet tiveram seus códigos-fonte revelados aos ingleses, que os desviavam do alvo. É que, para ser completa, a manipulação do nacionalismo exige autonomia tecnológica e industrial. E também capacidade de perceber que, no comércio entre nações, a economia e a geopolítica do fabricante de qualquer mercadoria falam mais alto do que eventuais interesses de clientes secundários.

Pouco depois, o país, sempre movido por singulares percepções sobre soberania, deslocou seu interesse para a economia internacional de uma forma inusitada. E veio a época em que a credibilidade estava em copiar, converter e amalgamar o nacional ao estrangeiro. Deslumbrada com o sem-limite do mercado desregulado, continuou sua sina de improvisações populistas. Com um comércio internacional sempre diversificado e vinculado igualmente ao euro e ao real, era surpreendente abrir mão de sua independência monetária e cambial e subordiná-la ao mito da paridade com o dólar. A concentração econômica explodiu em injustiça, desemprego e crise, e o século 21 começou com o comunicado melancólico da incapacidade do governo argentino de saldar compromissos. Era o começo da depressão e da recessão.

Como nenhuma nação grande e capaz aceita desaforos por muito tempo, logo o país saiu do nocaute. E procurou expressar a novidade pelo rearranjo partidário e por um eleitoralismo obrigatório e frenético. O discurso dos interesses imediatos entrou em ação, pois funciona como uma espécie de colonização da sociedade pelo Estado. Um método que só aceita a liberdade da sociedade civil se for como agência do sistema político. É a cidadania regulada pelo velho corporativismo social, de base clientelista, fisiológica e ideológica. Mas o fortalecimento das instituições, para além do patronato político e dos arranjos de ocasião, continua fora da agenda da nação.

Diante da vida política e econômica e dessa dança de modelos e contramodelos que rege suas circunstâncias, falta hoje uma definição do que seja a “argentinidad”. Tais circunstâncias, de tempos em tempos, criam instituições próprias do tamanho da cabeça de seus governantes. E os sinais exteriores de vitalidade, ainda que frágeis, costumam render apoios inesperados. É o que se vê no artigo O tango da reviravolta argentina, do jornalista americano e apaixonado por Buenos Aires, Ian Mount. Publicado neste mês pelo jornal The New York Times, o texto é um recado ao presidente Obama. Mount não chega a propor um dissenso de Washington e reconhece que “seria ridículo sugerir aos Estados Unidos que sigam esse tipo de liderança e deixem de pagar a sua dívida”. Também não desconhece a sorte que anda acompanhando os preços das commodities na vida do outra vez emergente país da camisa azul celeste. Mas escreve com todas as letras que “foi só depois que a Argentina passou a ignorar demandas de austeridade e entrou em moratória de sua dívida que começou a crescer”. O jornalista americano ainda elogia as políticas sociais e o burburinho comercial das cidades, e diz que os resultados políticos devem favorecer a renovação dos mandatos nas eleições nacionais de outubro.

Enfim, a Argentina continua um tom acima das suas possibilidades e sempre à espera de uma definição. A identidade nacional busca contornos universais, mas o que vemos sempre é um exacerbado nacionalismo quando a equação inevitável do progresso é posta diante do país: ou a vida deslumbrada da cigarra perdulária, ou a discreta construção da formiga precavida. Nação fortemente marcada pela memória do extremismo político, a Argentina vive esse curioso período democrático de altos e baixos. Combina governismo excessivo com oposicionismo escasso, e períodos de equilíbrios políticos estéreis, sem contrapesos, com a sempre aguardada perspectiva de se reencontrar como nação institucionalmente estável. Livre do fantasma de nosso continente, presente na Patagônia, que é mexer na Constituição para prorrogar mandatos.

Ao seguir sua polifonia criativa, ora obcecada com direitos políticos, ora concentrada em direitos sociais, esquece-se de que a economia pode até crescer bem, mas, sem política industrial, não tem bases sólidas. A expansão consumista não precisa mais de governos para se instalar nas nações emergentes. O boom agromineral exportador é um governo automático. É triste ver a Argentina acomodada em cadeias de produção desnacionalizadas, moeda desvalorizada, perda de competitividade tecnológica e tendo a riqueza interna apropriada pelos produtos importados. Com histórica vocação para ser matriz, o país festeja a condição de filial.

A volta ao passado de progresso do qual sentem falta os argentinos seria tarefa mais fácil se a modernização do país significasse menos improvisação e desequilíbrios. Por enquanto, permanecem indecifráveis os desencontros que movimentam a economia política do nosso vizinho mais festejado.

Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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