Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 22 de novembro de 2020.
A arrastada confusão em torno do resultado das eleições americanas pode ser vista como psicanálise pura: narcisismo ferido de quem tem baixa tolerância à frustração. No fim das contas as instituições vão funcionar. Mas, não é só isso.
A desilusão existe porque a ela precedeu uma ilusão. Iludidos e desiludidos passaram a conhecer mais seus ídolos. Como ocorre com a desmistificação que é ver o prefeito da política de “tolerância zero” em Nova York fazer o papel de advogado intolerante diante da eleição perdida.
O The Wall Street Journal, que é o mais respeitado dos jornais simpáticos a Trump, relatou a preocupação de que suas chicanas estejam dando falsas esperanças a milhões de seus apoiadores. Mas a preocupação não é dar falsas esperanças, mas sim o que se propõe fazer com elas. Trump se coloca claramente aberto a uma aventura autoritária. Seu grupo não liga se ganhou ou não a eleição. Adiciona-se a isso a peculiaridade de alguém que construiu sua vida através do litígio e sabe que após a presidência corre o risco de perder bastante coisa na justiça.
Sua intuição é de que basta que centros de poder nos estados resolvam embarcar na aventura conspiratória para melar o jogo. É aí que a providência tem bloqueado a audácia antidemocrática. Seu grupo tem minguado, desconfiado que uma aventura autoritária teria riscos demais.
A porta é cada vez mais estreita, mas segue aberta. Na terça Nevada e amanhã Michigan e Pensilvânia certificarão seus resultados. Ao confirmarem as urnas tornarão a porta ainda mais estreita. Mas ela só se fecha mesmo quando for jogada a toalha. Provavelmente entre 14 de dezembro, quando o Colégio Eleitoral declara seus votos, e 6 de janeiro quando os votos são lidos no Congresso. Mas a característica ruim da estratégia “Vai que cola?” é a de perpetuar a caravana de insensatez onde o pessoal torna-se perigoso.
De todo modo é surpreendente que existam de fato cenários traçados sobre o que os EUA vão fazer caso Trump decida chegar ao 20 de janeiro sem conceder a derrota. É a primeira experimentação na história de um populismo carismático autoritário nos EUA. Encontrou de fato milhões de apoiadores. Num país com tanto poder e orgulho, o viés autoritário sempre foi presente. Mas há uma fórmula bem bolada de direcionar esse viés para o exterior. Trump o trouxe para casa. E é dessa perspectiva que devemos entender por que o flerte autoritário se tornou real dentro dos EUA.
Em 1973 o PIB per capita do Brasil cresceu 11,3%. Era o fim do milagre econômico. Na seara da observação internacional do Brasil, foi publicado um estudo do espanhol nascido na Alemanha e radicado nos EUA, Juan Linz, que deu a dica de que a trajetória brasileira estava encaminhada à mudança.
Linz sugeriu que o Brasil vivia “uma situação autoritária e não um regime autoritário,” e que não havia condições para que o regime se institucionalizasse de maneira autoritária. À época, o Gen. Golbery trabalhava para uma empresa estadunidense e obteve o estudo de Linz antes dele ser publicado.
Em parte, isso compõe algo que se chama reflexividade, mas o fato é que o texto impressionou Golbery que veio planejar a abertura política controlada. Linz disse que os EUA “regularmente criam as condições para o autoritarismo em outros lugares, mas ao mesmo tempo contribuem para sua erosão.”
O que existe de curioso no fenômeno atual é o flerte tolerado com a possibilidade de uma situação autoritária nos EUA. Uma tentativa de mobilização populista que gere o apoio necessário para manter o país caminhando com sua dupla face: a condição de país rico com grande desigualdade social. Ainda que faltem as condições para virar regime autoritário, sem ajuste de conduta urgente a coisa vai ficar ali fermentando.
A reação a isso acelera a necessidade de deslegitimação de flertes autoritários ao menos no hemisfério ocidental. Não dá mais para ter dois pesos e duas medidas em relação à democracia. A complexidade do planeta está acelerando a aposta em populismos, nacionalismos e líderes carismáticos mais do que em democratas.
A explicação mais corrente para o fenômeno é o impasse sobre o que se fazer da desigualdade. Os EUA têm uma renda semelhante ou maior do que a da Europa Ocidental, mas níveis de desigualdade semelhantes à Rússia e à China, caminhando rumo ao Brasil. Para alguns observadores, os EUA só manterão esse patamar de desigualdade com um pouco mais de medidas estatais russas ou chinesas acrescidas de violência policial e o padrão corrupto da autoridade brasileira.
Ninguém sabe ainda ao certo como o grupo de Biden vai tratar a questão da democracia entre aliados. E quais serão seus principais parceiros nesta luta contra o populismo carismático autoritário que continua em moda no mundo.
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