Pronunciamento do ministro Gilberto Gil no Seminário Setorial de Cultura do Sudeste

Comida é cultura: Quem saboreia, sabe!

publicado por Assessoria de Comunicação Social – Ministério da Cultura – 11.11.05

Meus amigos e amigas

Boa tarde a todos, companheiros de mesa, tanta gente, tantos núcleos, tantas células daqui e de outras cidades.

Tenho usado muito a metáfora da bacia cultural para exemplificar o que vem a ser o Sistema Nacional de Cultural que estamos construindo.

Quando a Érica, secretária de Cultura de Juiz de Fora, começou a falar, a relacionar os municípios, fiquei pensando na verdade em uma grande bacia cultural. Mas o número de cidades e municípios – 27 ao todo, se não me engano – foi crescendo e acho que são várias as bacias dessa região de Minas. Pelo menos algumas bacias culturais existem formadas por esses municípios. De todo modo se são bacias de uma mesma região são bacias parecidas.

Essa idéia de bacia cultural ilustra muito fortemente essa compreensão que está se conseguindo ter hoje no Brasil sobre cultura.

Compreensão que nasce de estímulos que vem, desde as comissões de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e do Senado, que providenciaram há quatro, quase cinco anos atrás, a adoção do Plano Nacional de Cultura, do Plano Plurianual de Cultura, que agora, finalmente, foi votado pelaS duas casas e aprovada; até o trabalho que o Ministério da Cultura vem fazendo, com a apoio de todas as regiões e nas cidades; nas gestões culturais, nos entes culturais dos Estados brasileiros, dos municípios do Brasil.

Nós temos exemplos extraordinários hoje da compreensão dessa noção do sistema de bacias culturais; do conjunto, do ecossistema cultural em vários lugares.

O Sul é um exemplo muito forte disso. O Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, mas especialmente no Rio Grande do Sul, a forma como se agregam as ações e modo de pensar a cultura na região.

No Nordeste, o Ceará é outro exemplo extraordinário. A cultura cearense se articula inteiramente, através de vários municípios do estado, mas também, com seus vizinhos. Com o Rio Grande do Norte, com a Paraíba, com Penambuco. E assim, vai criando modos próprios, modos regionais de associação, de associar os vários fazeres, os vários pensares culturais daquela região, no sentido de dar rumo, de criar mais fortemente uma unidade daquela região.

No Norte do Brasil, o Pará e as regiões das amazônicas.

A região do Pantanal tem suas especificidades, têm manifestações culturais tão próprias, tão específicas, tão particulares daquele conjunto, daquela bacia ou daquele conjunto de bacias dali.

Ainda ontem eu estava discutindo sobre culinária. Quantas culinárias matrizes teríamos no Brasil? Comida… cultura é claro!

Talvez comida seja a principal cultura. A cultura começa pela barriga. A cultura começa pelo sabor. Saber e sabor. A mesma raiz. Saber e sabor são a mesma palavra. Então, quem saboreia sabe. Isso é forte, um dado cultural.

Mas ontem estava eu falando dessas grandes matrizes. Quantas cozinhas, quantas culinárias matriciais a gente tem no Brasil?

Eu diria logo, começando por casa: temos a da Bahia.

Depois pra não ser descortês, cito a culinária mineira. Agora, não é só por descortesia, não. É porque talvez ela seja, quem sabe, se for ver bem lá no fundo, ela é até mais culta e profunda do que a da Bahia.

Mas estão ali empatadas.

Depois vem a terra do Márcio Meira, que é culinária paraense. É extraordinária e variada. Poderíamos também considerar a culinária gaúcha.

Então, anteontem, eu estava me dando conta, durante um almoço na casa de um amigo cuiabano, da riqueza da culinária do Pantanal.

Visitei Cuiabá há um mês atrás, e me encantei com a variedade, as escolhas, a capacidade extraordinária de escolher elementos, os ingredientes e temperos; e carnes e peixes e farinhas e frutas.

O modo de usar o milho, de usar a farinha, as frutas.

Juntar a banana com a farofa e tudo aquilo. Eu fiquei só me dando conta.

Aliás, recentemente me dei conta por causa da visita a Cuiabá, e na casa desse amigo nosso lá em Brasília, de que a culinária cuiabana também é uma das grandes matrizes da culinária desse país.

Digamos: é um dos córregos, dos riachos simbólicos que formam essa bacia cultural daquela pantaneira.

Então, eu estou falando isso tudo pra dizer a vocês que é assim que a gente precisa considerar, com muita naturalidade, a vida cultural do nosso país.

A cultura é natural, ela está na natureza.

Ela está nas relações profundas do homem com a natureza… começa por aí.

Não é à toa que a palavra cultura vem de cultivo.

Vem de cultivar, o que se cultiva.

Aquilo que se come: o cereal, a verdura, a coisa que se planta pra comer. A coisa que se cultiva.

A fruticultura, psicultura, o peixe que se come.

Então, é isso: cultura é o fato de estarmos aqui sentados. O teatro que foi construído, que tem o arquiteto que desenhou, o pintor que veio e pintou o teto e que juntou a arte com a técnica, a técnica com o costume.

O modo de ser com a forma de nos relacionarmos; com a religião que é uma outra forma cultural extraordinária, importante de pensar o além, pensar o antes e o depois da vida na terra.

Pensar as regências que a nossa vida tem.

Somos regidos ou não somos regidos por algo maior?

Se há essências para além das nossas palavras. Se há realidades impalpáveis para além dos nossos gestos, dos nossos desejos, das nossas emoções.

Tudo isso é cultura, tudo isso é natural.

A cultura é o gesto, a cultura é a mãe, é o passar de braços em braços a sua criança que nasce. Como é que se canta: arundê-áruiá…

Em um país como o nosso, um país com quase 200 milhões de habitantes, população formada por procedências variadas de gentes e gestos, pessoas que vieram de tantos lugares do mundo: da Europa, da África, da Ásia, de nossas florestas brasileiras, das praias brasileiras.

Quando Pedro Álvares Cabral chegou por aqui, estava lá nas praias, os índios que o receberam com um ato cultural imediato.

Os portugueses saltaram daquele barco com suas gaitas, suas guitarras, enfim, encantados com aqueles índios nus, com aquelas peles bronzeadas, ali na praia.

Fizeram ali mesmo a primeira roda de samba.

A palavra samba é uma palavra indígena. Vocês sabem o que significa samba? Samba significa exatamente aquilo que aconteceu ali, no dia 22 de abril de 1500, naquela praia de Porto Seguro, em Cabrália.

Os marinheiros saltaram de um navio, com suas gaitas, suas violas, e os índios vieram, e ali mesmo tocaram e dançaram.

A palavra samba na língua tupi significa “Roda de Samba”. É dali que vem a palavra e o gesto.

Depois, a palavra semba veio da África.

Semba também é samba. O samba já estava aqui, já estava lá, estava em qualquer lugar.

A cultura natural, está aí: acontece no tempo, acontece porque existe vida, existe a matéria, existe o espírito.

Existe porque o espírito é matéria sutil e a matéria é espírito denso.

É por isso que eu digo: cultura é item da cesta básica, é alimento.

É preciso explicitar essa noção.

Vamos acabar com essa história que cultura é uma coisa que só os saberes e os fazeres de uma elite permite ter; que é algo que se ensina aos incultos e que só seremos admitidos como seres de categoria elevada, quando tivermos absorvido a cultura do outro, daquele colonizador que veio para cá nos colonizar.

Nada disso! Os índios lá de Cabrália tinham uma cultura extraordinária. Eles misturaram a cultura deles com a cultura dos portugueses, logo ali, na praia.

Os portugueses ficaram encantados com aquele cocares, com aquelas roupas, com aquelas cores maravilhosas, aquela capacidade extraordinária de juntar as penas, aquela coisa fantástica, aquele cromático maravilhoso.

Recentemente na França, Claude Levi Strauss mostrou a arte plumária brasileira.

Ele trouxe da Rússia, de um museu russo, para mostrar a beleza dessa arte aos franceses e a todas as pessoas do mundo.

Eu estava lá. Agora, em Paris, por ocasião do Ano Brasil na França, o grande antropólogo, grande cientista, grande pensador e professor Claude Levi Strauss, veio a público dizer: “Olha aqui o índio. Que beleza, que coisa maravilhosa, que cultura profunda!”

A arte dos índios Wajãpis, a cultura corporal dos índios Wajãpis, foi considerada Patrimônio Cultural da Humanidade.

A pintura que os índios fazem com jenipapo e urucum em seus próprios corpos, ali na Amazônia, foi considerada como Patrimônio da Humanidade.

E a gente nem sabe disso. A gente às vezes é levado a nem considerar que isso pudesse ser um valor cultural da nossa terra, do nosso povo, da nossa gente.

Então é isso!

Esse discurso precisa ser feito. Eu faço, eu insisto. O Brasil precisa compreender a grandeza que tem; juntar sua grandeza cultural com a de todos os outros povos dos mundo.

E essa força cultural profunda será a salvação, sempre tem sido, sempre foi e continuará sendo a salvação da humanidade.

É no espírito que o corpo se salva!

É no símbolo, na capacidade de cultivar o simbólico, e no abstrato que o concreto pode ser alguma coisa, que a pedra tem significado. Somente quando ela pode servir ao arquiteto para fazer as paredes, as construções. Para fazer os lugares, para erguer os abrigos que nos abriguem das tempestades.

É assim! Isso é cultura! Cultura não é uma coisa de escola.

Cultura é isso, é cesta básica. É conversa em torno da mesa. Todo dia, antes da novela… uma outra grande força cultural.

É isso. Vocês estão aqui reunidos, vão fazer a conferência dessa região, dessa bacia cultural.

Mais tarde, teremos a conferência em Brasília, em plano nacional.

E um repórter me perguntava: “E os resultados concretos?”

Digo: Não há resultados concretos. Tudo que é sólido desmancha no ar.

Obrigado.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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