São Petersburgo

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Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 8 de Setembro de 2013.

Foi-se a 8º Cúpula do G-20 sem tomar conhecimento de que ali naquela maravilhosa cidade o escritor que mais influenciou a literatura mundial conspirou contra a tirania, riu dos tolos, foi condenado à morte, adoeceu, endividou-se e viveu frequentemente atormentado pelo governo e devorado pela alma eslava do povo russo. Dostoiésvski não viveu para ver a redundante dispersão que foi a reunião de governantes mundiais. De 2008 para cá esse corpo não-institucionalizado, uns burocratas, outros grotescos, pouquíssimos líderes de fato, passaram a querer tratar de questões da gestão econômica e financeira do mundo, tentando fomentar, pelo diálogo e a busca do compromisso, um ambiente de maior previsibilidade, equilíbrio e harmonia. Um mundo sem governo, mas com governança: é o que os entusiastas desse tipo de arranjo propõem. Tal concertação, entretanto, tem se mostrado confusa, esquiva e retrógrada em relação ao livre comercio entre nações.

Ainda que a sustentabilidade do G-20, para não falar de sua efetividade, seja questionável, é melhor com ele do que sem ele, pois o elevado grau de complexidade da economia mundial precisa de um local para coordenação de políticas macroeconômicas, mesmo que não ideal. Uma coordenação que é fundamental – especialmente na ausência de uma potência hegemônica no campo econômico – a fim de se evitar um cenário de “salve-se quem puder”, num mundo em que nenhum líder sabe assumir sua liderança, como o diagnosticado pelo brilhante historiador e economista Charles Kindleberger nos anos 1930 da grande depressão.

A crise que explodiu em 2008 ainda não passou, mas a agenda de interesses políticos das nações abriu-se para outras preocupações. Sintomático ver o G-20 tomado por assuntos que não se propõe tratar. É claro que presidentes de países tão diferentes, mesmo juntos, dificilmente falam a mesma língua. A política virou ódio, a amizade é a guerra. Mas não deixa de ser curioso um G-20 onde seus líderes preferiram conversas de bastidores. Especialmente a respeito do caso do desequilíbrio entre as duas partes da guerra civil síria e as armas proscritas usadas pela parte mais poderosa, ao invés dos desequilíbrios que se acentuam na economia mundial e o conjunto de medidas com grande efeito colateral externo lançado pelas economias mais sólidas.

No próprio caso do Brasil toda a preocupação com a política monetária norte-americana acabou escanteada para que holofotes fossem jogados sobre a questão da espionagem: esse conto de fadas que o amor de um carioca por um jornalista inquieto escreveu a partir do Brasil. As agendas paralelas só fazem consolidar a ideia hobbesiana de que o mundo é uma arena de soberanos gladiadores. De fato, como apontou Hobbes, “onde não há poder comum, não há lei”. Costumes e códigos de etiqueta de clubes ajudam a aplacar a desordem, mas não dão o direito de nenhum governante ser ingênuo. É melhor se precaver, pois “onde não há lei, não há injustiça”.

Pegue-se o caso da espionagem, por exemplo. Sempre, sempre foi o tormento tolerável das regras não escritas do jogo internacional. E está aí há tanto tempo que é jocoso ver que exista quem se faça de surpreso. Na própria famosa formulação de Hobbes lá no século XVII sobre a anarquia do sistema internacional, já havia indicação para o fato de que os soberanos “em todos os tempos (…) espionam continuamente os vizinhos”. Não há ainda hoje poder comum que impeça isso.  O grande escândalo desse caso de espionagem, não há engano, é a fragilidade constrangedora da contraespionagem da maioria dos países. No caso do Brasil é isso que tem que ser investigado, a política de papel e saliva que nos domina na área de alta tecnologia, inteligência e contrainformação.

Ao longo de toda história humana as nações que ascenderam ao topo do poder em determinada região, o fizeram ao controlarem as rotas dos fluxos inter-regionais de maior interesse econômico e social. Hoje em dia muitas das transações de maior valor são medidas em bytes e zettabytes. A questão continua  saber se cidadãos – protegidos por leis de privacidade – estão sendo ilegalmente espionados e se o Estado é ou não inepto para proteger os governados de varreduras indevidas. Nosso problema continua o de ser um país encalacrado em si mesmo, avesso à autonomia do progresso tecnológico e sem lugar para a inteligência rival.

A China e os Estados Unidos estão em uma disputa sobre espionagem há anos. Um acusando o outro de ser cada vez mais agressivo e capaz de superar as barreiras de proteção. De vez em quando aparece uma reclamação formal e para aí. Não se azeda uma infinidade de outros interesses por não se saber lidar com algo que veio à tona, mas que sempre se soube que estava oculto.

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PAULO DELGADO

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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