Sete aplausos e sete silêncios na ONU

Gaúcho de Alegrete, o chanceler Oswaldo Aranha presidiu a 1.ª Assembleia-Geral, em que nasceu o Estado de Israel e sua sina de alvo sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos. O Brasil usa a ONU para elevar a graça do País no mundo. Não é lugar para quem não quer levar desaforo para casa, eufemismo que os brutos usam para ofender outros dizendo-se ofendidos. Aliás, em 1982, foi um rude e não democrático João Figueiredo que inaugurou a tradição da fala presidencial.

Lula fez um bom e nostálgico discurso de abertura na 78.ª Assembleia-Geral, sobre a necessidade de “descongelamento do poder mundial” – uma peça da prateleira da Política Externa Independente inaugurada por San Tiago Dantas e Afonso Arinos, nos governos Jânio Quadros e João Goulart, e mais bem traduzida pelo chanceler João Augusto de Araújo Castro, em 1963, na 18.ª Assembleia-Geral. São 60 anos do consagrado princípio dos 3 Ds (Descolonização, Desenvolvimento e Desarmamento), ilusão geopolítica de países pobres e não alinhados. Desde lá, o Brasil critica gastos militares como “despesas inúteis para fins insensatos”. O tom de auditoria não altera o humor do complexo industrial-militar liderado por EUA, China, Rússia, Índia e Arábia Saudita.

É difícil imaginar uma Assembleia Constituinte dos povos do Hemisfério Sul. A atmosfera de desavenças impede a clarividência do continente se exprimir. Mas um Brasil moderado de propósitos e firme de objetivos não deve considerar independência e pacifismo como desvinculados dos princípios democráticos e cristãos, nem admitir que algum Estado possa praticar barbárie ou violar a soberania do outro. Hoje, há dúvida se alguma estrutura jurídica condicionaria nossa ação mundial. Tirando consequência da incoerência, a fala navega livre e expõe as interessantes constelações que Lula usa para navegar pelo mundo atual.

Um certo ar de epifania saudosa dominou o discurso, cutucando emoções do mundo, querendo renovar o elogio – “Le Brésil est desormais présent à tout”; “C’est le Brésil qui nous encourage” (o Brasil agora está presente em tudo; o Brasil nos encoraja) – que Araújo Castro recebeu do embaixador do Egito na reunião preliminar da Conferência dos Países Não Alinhados (Cairo, 1961), ao defender que “nenhum país tem um monopólio sobre a verdade”; que o Brasil “não é neutro nem aliado” e “nenhum ato jurídico nos vincula à “defesa do Ocidente”.

É difícil ver o Brasil caminhar rumo ao futuro enquanto dúvidas sobre o presente o ocuparem inteiramente. Ouvi a voz frágil e dignamente forçada de Lula como um vaticínio sobre sua vida peregrina. Sei que o Brasil dá importância muito grande ao narcótico televisivo que leva o político a agir por cálculo. Lula, ao decidir falar de mitos e contramitos externos, valorizou o despotismo espiritual de um mundo que não se oferece à investigação.

Salvar o Brasil é nosso maior ofício. A infelicidade do mundo está impregnada de questões nacionais mal resolvidas. Brizola e Darcy Ribeiro, por exemplo, não concordariam que o destino de uma criança parece traçado no ventre de sua mãe. A tragédia mais revela o fracasso da política educacional do que o da família pobre.

Minhas observações não visam a julgamento. Vejo uma geração que se esvai em marcha batida em todos os países. A responsabilidade do presidente de decidir não assegura a um país a mesma ordem de consequência que a decisão de evitar fazer. Mas fixa no governo um particularismo em que o espírito do governante pode estar sobrepujando as condições reais de poder das forças internas que controla e do excedente de poder geopolítico de que dispõe.

Temos mais montanhas e vales do que aparece. As forças da Pátria andam às cegas e já não se sabe o que as nutria. Ao governo basta assegurar que sua dedicação a um objetivo tenha método e que não espalhe fantasia.

O discurso de 21min7segs tem um andamento de ópera. Foi interrompido sete vezes por aplausos e seguido sete vezes por silêncios. Por afeição, recebeu aplausos compassivos para slogans eleitorais; fome; paridade salarial; redução de desmatamento; aventureirismo político de direita; Julian Assange; e intervenção indevida a Cuba. Por apreensão, ouviu silêncios ostensivos para responsabilidade comum e diferenciada sobre o clima; multilateralismo corroído com FMI e Banco Mundial inaceitáveis; voz dos mercados maior do que voz das ruas; imigrantes; Ucrânia; gastos militares; e credibilidade do Conselho de Segurança.

A política externa é sempre melhor como projeção de um povo do que a projeção de seu governo. Há ou não um banco de provas a que o Brasil se submeta? O mundo é tão grosseiramente materialista que a própria revolta contra a desigualdade se tornou um negócio. Porque a forma que a economia encontrou de transformar prazer em vício foi produzir lixo e poluição. Taxar carros talvez merecesse os aplausos que faltaram ao propor taxar os ricos.

ToráBíbliaAlcorão: cuidado com o que desejas! Presidente interino do Conselho de Segurança, ao Brasil não cabe ambiguidade. O errado do errado avança pelo mundo. A guerra é a mais absurda forma de a política dispor da vida. Está aí o Hamas, obra-prima do caos, fanatismo entre irmãos, o mais gélido dos monstros de gelo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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