Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 27 de setembro de 2020.
Em frente a tevês e redes sociais do interior do estado de Nevada, Trump reclamou que sua equipe não o deixara pousar com o Air Force One no aeroporto do condado em que realizava o comício. Fingiu que não sabia que a pista não tinha capacidade para receber o 747 presidencial. Fez charme ao resmungar que gostava de ter o Air Force One atrás de si nos comícios.
É o estilo dele, que vem do setor de lançamentos imobiliários. Se considera uma cobertura. Afinal, em Nevada, fica a torre dourada com seu sobrenome no topo. Agora presidente, seu símbolo preferido é o que projeta a soberania da Presidência, confundida com sua personalidade. Não podendo ter o avião pelas costas, mandou estacionar atrás de si a limusine presidencial. Um Cadillac conhecido como The Beast. “Vejam a besta. O que vocês não sabem é que a besta custa quase tanto quanto o avião”, exclamou Trump, tentando equilibrar-se entre frustração e encantamento com sua régua monetária. E viu seu povo achar sentido em um avião custar o mesmo que um automóvel.
“Daqui para frente será apenas América em primeiro lugar. America First”, repetiu Trump em seu discurso de posse. A ideia de America First veio do primeiro líder americano que gostava de fazer comícios em frente a um avião. No caso, Charles Lindbergh era um aviador e foi o primeiro a atravessar sozinho o Atlântico. Nunca chegou perto da possibilidade de concorrer à Presidência, salvo no romance Complô contra a América, de Philip Roth. O fetiche de um líder que pousa dos céus com a mensagem é antigo. Mas, semana passada, na primeira vez que líderes do mundo não puderam pegar um avião e ir a Nova York para discursar na ONU, o que impressiona é a dissonância internacional sobre o sentido dado à palavra soberania no vocabulário do poder.
Já é padrão admitir que, dentro dos países, as pessoas têm ideias muito variadas sobre democracia. Mas, entre países, o que pega é a variação de sentido em torno do conceito de soberania. A ideia clássica de soberania como o Estado ter autoridade máxima sobre tudo o que existe dentro de seu território, e não aceitar interferência de outros Estados em seus assuntos domésticos, ainda é a cartilha seguida por muitos países. Entretanto, soberania já é outra coisa.
Roland Paris, que foi assessor para assuntos internacionais e de defesa do primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, considera que a reafirmação por parte de Rússia, China e EUA de versões de soberania são extralegais e orgânicas. Nessas versões, o exercício da verdadeira soberania está acima da lei e se expressa em nome de um povo em busca de grandioso destino coletivo. Se os canadenses estão preocupados, o consórcio nipo-britânico que controla o jornal Financial Times, de Londres, também está. O problema da jurisdição extraterritorial, mandar na casa dos outros, que alguns países estão clamando para si, é um prato cheio para escancarar a lei do mais forte.
Esse fenômeno está se espalhando em diferentes áreas do mundo que não têm clareza sobre o que é soberania. Semana passada entrou em vigor a Lei geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira. O Brasil, que não teve força para determinar a localização, dentro do país, dos dados gerados no país, colocou na LGPD que ela se aplica também extraterritorialmente. Estados soberanos não escrevem que o leão miou. Confrontados é que sabemos se é um gato rugindo.
Trump está testando o exercício da soberania dentro do próprio território para ver se é leão ou gato diante do mundo. Não esconde sua grande admiração por Putin, da Rússia, e Xi, da China. Para se equiparar aos dois, quer que os norte-americanos aprovem a institucionalização da sua dubiedade sobre soberania interna e internacional. A melhor tradição dos EUA é a ideia de que a soberania do governo, sobretudo da Presidência, permanece sob a égide da intensa desconfiança na sua atuação doméstica. Compensada por amplos poderes para a atuação externa, inclusive para errar, como no Vietnã e no Iraque. Domesticamente, os EUA se orgulham de ser a terra das pessoas livres e onde o governo atua sob o império da lei.
Por outro lado, internacionalmente, o governo americano tem poucas amarras no exercício de sua soberania, protegida por atos secretos. A releitura de Trump sobre a legitimidade da soberania presidencial em solo americano ainda é balão de ensaio. Na Rússia e na China, já são a regra. Mas faz muito tempo que essa possibilidade paira sobre os EUA.
Está a pleno vapor no mundo o desmoronamento do conceito interno de soberania popular. A rendição interna à soberania do governante é uma capitulação da democracia que cada vez mais se materializa no mundo.
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