TRISTE HISTÓRIA NA ETIÓPIA

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 6 de dezembro de 2020.

O Nilo Azul nasce num gigantesco lago no norte da Etiópia, a uns 750 quilômetros do mar. Entre o lago Tana e o Mar Vermelho, o planalto da Etiópia se impõe de tal maneira que o Nilo Azul, ao invés de seguir o caminho mais curto para o mar, escoa majestoso continente adentro, curvando-se eventualmente rumo ao norte numa jornada ao encontro do Nilo Branco que consome o dobro da distância de sua nascente até o mar mais próximo (cerca de 1.500 quilômetros). Dali, somadas às águas do Nilo Branco que vem de ainda bem mais ao sul, o Nilo corta o Sudão e o Egito, em paralelo ao Mar Vermelho até finalmente desaguar no Mediterrâneo. Uma jornada teimosa desse rio de milhares de quilômetros, rasgando a terra seca, que transportou boa parte da história da humanidade ao longo dos milênios.

Uma humanidade que vira e mexe fica aquém dos melhores anjos de sua natureza. Na fascinante Etiópia, país de culturas milenares, de 9 locais considerados patrimônio da humanidade, dos quais 3 ficam na região do lago Tana. Pois é nesta terra histórica que mais uma guerra desestabiliza a vida das pessoas. 

O foco do conflito se dá na região de Tigré, terra do povo tigrino, e que fica na fronteira da Eritréia, que é um país que tem uma história comum com a Etiópia. O nordeste da África, onde hoje estão Sudão, Eritreia, Djibuti, Somália e Etiópia é uma região de fronteiras porosas de povos que vivem através delas desde antes de serem constituídas. Há também a dinâmica dos estranhamentos internos entre povos que compartilham a mesma fronteira e que acaba sobrando para o mais fraco, como é o caso da violência contra o povo tigrino. Fraco pelo contexto e a circunstância de que o poder está nas mãos de outro etnia, majoritária. Pois quando esteve no poder, até 2012, o usou arbitrariamente.

Karl Deutsch, que no século 20 pesquisou com influência as questões sobre guerra e paz na humanidade, quando indagado sobre os efeitos de certos nacionalismos na criação de guerras, lembrava a ironia europeia, continente que ajudou a criar a confusão atual africana, de que uma nação nada mais é do que “um grupo de pessoas unidas por um equívoco comum a respeito de suas ancestralidades e um desapreço comum por seus vizinhos”. Seja dentro de uma geração, ou através de várias décadas ou séculos, povos e nações são acaso de migrações. Muitas delas justamente causadas por conta de círculos viciosos de conflitos. Como é o caso do que aprisiona o potencial etíope numa situação ruim de continuadas desavenças demarcadas por sotaque, língua e hábitos culturais. 

Era outono de 1943 quando as forças italianas exauridas abandonaram a guerra de guerrilha que desde 1941 impunham ao solo etíope. No mesmo outono na Europa, a Itália fascista tinha sido reduzida à infame República de Salò. Quando o estado italiano perdeu Gondar em 1941, próxima ao lago Tama e sua última capital da desastrada e anacrônica aventura imperialista italiana na África, ainda ficaram por ali aterrorizando a população por mais dois anos se valendo do relevo que é propício à guerra de milícias.

No Tigré, o povo fala a língua tigrina, que é a língua mais comum na fronteiriça Eritreia. Em 2018 Abiy Ahmed assumiu o poder na Etiópia e vinha conseguindo resolver uma série de problemas pontuais que atormentavam o segundo país mais populoso da África, dando um fim a guerra que travava com a Eritreia. Ganhou um festejado e esperançoso Nobel da paz por isso, mas agora suas forças oficiais estão em sangrento conflito com os tigrinos dentro de sua fronteira.

Membro do maior grupo étnico do país, os oromo, Abiy, que é filho de um muçulmano com uma cristã, terá que se esforçar ainda mais para pacificar as cizânias e superar birras assentadas em séculos de rivalidade tribal. Meles Zenawi, membro dos tigrinos, governou com mão de ferro a Etiópia até 2012, ficando famoso por duas coisas: ser um dos mais autoritários e repressivos governantes da África, enquanto recebeu, só em 2010, US$3 bilhões de ajuda do Reino Unido, dos EUA e do Banco Mundial. Abiy precisa ser melhor que isso, após ser condecorado por antecipação. Não dá para a Etiópia viver refém dessa sucessão de violências e autoritarismos. 

Por esses dias à ONU foi garantida, pelo governo etíope, sua presença desimpedida na região do Tigré para tratar dos refugiados. As lideranças oromo e tigrinas bem poderiam entrar em acordo que impeça o conflito de se perpetuar em guerrilha por anos a fio.Um acordo qualquer de boa convivência. Alguma coisa minimamente inspirada na “História de Rasselas, Príncipe da Abissínia”, antigo nome da Etiópia, uma história emocionante escrita por Samuel Johnson há mais de 200 anos onde ele exorta as pessoas a sempre buscarem algo além do que a vida impõe. E adverte aos poderosos: a glória de ter poder sobre a miséria é a pior piada do mundo.  

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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