Um tempo razoável de desespero

Capital Político – 12 de abril de 2020.

Há uma ligeira diferença de opinião entre ele e o cargo que ocupa. E como não se traz o tempo de volta, melhor entender sua cabeça. É evidente que fantasmas famintos o atormentam impedindo de se dar conta de que se Judas saiu à noite, é para Judas que seus passos o conduzem. Nós caminhamos através de nós mesmos e ainda que encontremos qualquer um pelo caminho, é a nós que estamos procurando.

I

Legado pesado, um tempo novo

Conheci pessoalmente todos os Presidentes da República de Tancredo Neves até hoje. São 35 anos. Sei que o prestígio é grande, e que ser o chefe de Estado não é nada ameno. Político, escritor, empresário, engenheiro, intelectual, operário, militante, advogado, bem ou mal, já ocupou aquela função que nasce do destino e impõe prontidão e doutrina organizada.

Curioso é que justamente agora, com a cadeira a cargo de um soldado, cuja formação não deveria permitir trabalhar com expectativa falsa, o que mais incomoda o presidente seja justamente a fisionomia inédita do combate, a ponto de querer escolher outro campo de batalha para ajustá-lo à sua compreensão pessoal.

Adversário da pluralidade de ideias se espantou com o grande apoio à quarentena e imaginou uma armadilha. Voou como pássaro perdido entrando no primeiro buraco que achou. É somente por isso, seu voo errado, que o governo se fez entrincheirado nesta hora. Diante do desligamento geral da vida cotidiana e da parada repentina e sincronizada da economia mundial formou-se rapidamente um consenso nacional de que todos deveriam se salvar.

Macacos me mordam, pensou o presidente. Não. Não serei escravo da uniformidade do discurso sanitário que exige marchar sob ordem-unida. Não. Não serei incorporado ao filtro institucional da maioria. Foi na contramão que me elegi, pela atração que o eleitor tem por quem aumenta a frequência dos fatos negativos. Meu papel é insultar, provocar e desafiar o senso comum, inclusive no combate ao coronavirus. Não posso ajudar a estabilizar as informações no mundo real e ser o operador nacional dessa crise. Melhor ficar no turbulento mundo do discurso e na fictícia rede de seguidores digitais, com suas fúteis maquinações em interesse próprio.

O presidente não deveria ser um cobrador de dívida ruim e duvidosa, especialmente quando fugiu o chão que o elegeu. Com a crise sanitária, a realidade que impulsionou sua vitória eleitoral ficou suspensa no ar. É preciso cair na real e entender que a agenda moral e liberal perdeu o contexto. E diante de pandemia não há dilema entre economia e saúde. A insânia é priorizar a economia. É hora de gastar toda gota de energia no Estado de Bem Estar Social para salvar todo o povo, rico ou pobre, do desespero. Começando por dar folga política ao eleitor para que ele possa pensar mais na sua vida do que no governo, e fazer por onde não ser contaminado.

O que a hora pede é não tratar o eleitor como simples alimento, o que muito político com avidez faz, os comendo quando finge ajudar.

O país não precisa de medidas excessivas, nem demagógicas, mas razoáveis, emergenciais e diretas para salvar pessoas e não perder o futuro. E proteger os empregos e a atividade econômica que estão participando do mutirão exigido pela autoridade sanitária. Como está fazendo o Tesouro de todos os governos mais sérios do mundo, inclusive com orientação do FMI.

II

Um grito de alerta

A pessoa morre de sede antes de morrer de fome, e de falta de ar antes dos dois. A inédita batalha mundial contra o coronavirus não é somente uma alegoria dos conflitos humanos. É um grito de alerta embutido na mitologia desse tempo agitado que somente vê valor na velocidade de tudo, como se a vida fosse só um dia. Não precisa de muito tempo para o desespero cumprir o seu papel. Escolha uma hipótese: faltar ar; perder o emprego; esperar a decisão do juiz; crédito; fluxo de caixa; folha de pagamento; outros encargos; ser pobre e não receber até agora uma cesta básica ou o recurso anunciado.

Olhando as reformas necessárias ao país como um tesouro roubado pelo coronavirus os liberais sentem-se amarrados, e não conseguem fazer o luto rapidamente enterrando a agenda fiscal e liberando o represamento monetário. Tal remorso de consciência combina com a ideia fixa do presidente de negar a gravidade da pandemia, enquanto procura uma saída que ajuste seu discurso conflitivo.

O Brasil, se continuar com suas dúvidas sobre o que de fato importa, com a burocracia dos costumes seculares travando a liberação das medidas emergenciais já tomadas, inventando canais de distribuição que não vão funcionar para o pequeno comercio e a atividade informal e “invisível”, será o mais prejudicado dos países emergentes.

Naturalmente tudo fica menos importante se você não está interessado em entender. Especialmente quando o presidente, sempre afetado por sentimentos hostis que ele próprio atrai e provoca, usa de absurda persuasão corporal urbana – passeatas e saídas – para evitar conduzir, assentado na cadeira presidencial, o debate de metas que evite a inadimplência geral. E ajude, coletivamente, a monitorar o cenário de um tempo razoável de desespero onde toda a sociedade esteja informada e possa prever e suportar a travessia.

Sem que exista uma ideia moral e prática dando sentido ao destino que estamos escolhendo – já são 40 por cento dos brasileiros em dúvida sobre a estratégia correta de enfrentar a pandemia – crescerá a força do malabarismo presidencial.

Primeiro, paralisando o país em torno desse western sanitário que claramente passou a concentrar sua força em torno de dois alvos principais: (i) considerar secundário a contaminação e prioritário não parar a atividade econômica e, (ii) consolidar uma visão negativa do envelhecimento, pelo charlatanismo científico batizado de isolamento vertical, um gueto para os “improdutivos inativos”.

Isolamento vertical é expediente mal assombrado e anticristão que põe o Brasil à prova se começar a concordar que além de Deus, alguém possa ter o direito de escolher quem vai se salvar, quem vai morrer.

Segundo, porque quando uma crise de saúde inédita encontra o país na sua velha crise econômica, com um governo nascido da permanente crise política, é preciso uma coalizão política de bom senso para mudar o rumo da gestão das coisas. É o que tenta fazer o Congresso Nacional em parceria com o Judiciário, frente ao isolamento do Executivo.

Isto explica a confusão alucinatória do presidente, que fustiga sem pudor seus ministros, governadores e o parlamento, estressando mais ainda o cenário e impedindo que o Brasil saia mais unido, compreensível e justo dessa crise sanitária. Porque enquanto o Palácio boicota a quarentena, felizmente nenhum princípio humano ou ético é violado pelo Ministério da Saúde ou pelos governadores. No meio do delírio o povo vai se salvando na penumbra, apesar do estilo claro-escuro e não-cristão das polêmicas sobre o que é o principal.

Tem razão quem se preocupa. Porque com suas saídas ostensivas e propagandísticas do Palácio está no ar uma pauta macabra imposta à disputa política. Seus temas são governadores e prefeitos, vacina ou malária, isolamento ou rua, economia ou vida, juventude ou velhice. Podemos correr o risco de começar a ficar subjugados ao relógio presidencial que bate com vários tempos de atraso e acordes de marcha fúnebre. Cidadãos legais vivem debaixo de todo governo, mesmo os fiéis a causas perdidas. Mas atrás de mil véus nada fica escondido, especialmente ver o presidente agarrado mais à bolsa do que à vida.

A democracia é forte, mas não é um regime de força. Confunde quem trabalha com expectativa falsa e não consegue agir certo diante de dificuldade. O presidente quer se manter à tona sugerindo que o bombeiro salve a casa e deixe a família morrer. Acreditar nele é como segurar água na mão. Não aceita a realidade, inventa dilemas falsos, acha que a saúde pública prejudica a economia. Diz sem pensar o que pensa. Tem se comportado com imenso atrevimento, terrível como um desastre.

III

Uma derrota de Pirro

A grandiosidade da escala do que estamos vivendo não pode ser percebida por todos pela falta de amplitude heróica dada pelo governo ao problema. Não é porque considere um acontecimento sem importância. Mas como não foi criado por ele, e sem senso de grandeza – esse momento sombrio da história da saúde pública mundial, que se viu despreparada para enfrentar a doença e acolher a todos – insiste em dizer que o coronavirus é uma fatalidade, um acidente de carro, uma gripe, e por isso está nas mãos de cada um se salvar. O rosto do governo que é possível ver nessa tragédia separa a responsabilidade oficial de uma parte dele, da responsabilidade moral da outra parte. Parece um jogo em que o dono do baralho é blefador – não conhece as regras, aposta mais do que tem, mas confia que um fiasco aumente seu cacife.

Talvez o Centro de Inteligência das Forças Armadas e as polícias estaduais estejam atentos para os modelos estratégicos de enfrentamento de populações abandonadas e em pânico. Certamente sabem como se dá hoje, no mundo digital, a participação dos cidadãos na obtenção de dados para mobilização e criação de situações inusitadas. Fome, desamparo e flagrante indiferença ou injustiça são também fortes estopins de situações em que as pessoas não escolhem sua saída.

Se o presidente se contenta com a pompa pessoal que o cargo projeta, e acha que governar é a melhor maneira de expressar as opiniões e desejos que possui, é hora de determinar, por escrito, quem de fato vai dar as ordens necessárias à gravidade da ocasião. Do contrário, o impacto da arrogância na vida do país prepara uma derrota de Pirro, o inevitável fracasso desnecessário e dispendioso.

Não é fácil conciliar democracia e emergência porque são situações que exigem mais cérebro e sentimento do que máquina e força. O método de convencimento democrático, para a preservação do tempo de esperança e solidariedade que ajuda a soerguer a sociedade depois da desgraça, não somente serve à contenção da doença pelo isolamento voluntário a pedido da autoridade sanitária, como dispensa o Estado de Sítio pela autoridade arbitrária.

Para isto é preciso não querer voltar ao que não existe mais, como o especulador de Bolsa atrás de papéis fictícios. O que houve no mundo foi mais do que uma parada repentina tirando a liquidez dos mercados. Há algum tempo experimentos individuais, que favoreceram eleitoralmente ao presidente, superam as decisões coletivas e institucionais. Os acomodados cursos de economia jamais imaginaram considerar o PIB um conceito somente de fluxo e não sabem o que fazer agora com a riqueza sem movimento e os principais fatores de produção, o dono do capital e o da mão de obra humana, precisando ser protegida.

IV

Só Freud explica

Será difícil manter a democracia em situações de emergência? O que o presidente perde de fato com o coronavirus ? Vasculhar o inconsciente ajuda a entender por que se identifica tanto com este vírus a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo.

O presidente saiu nesta Semana Santa várias vezes provocando aglomeração, contato, contágio. Um comportamento psicossocial repetitivo, estimulado pelo prazer contínuo de transgredir. Vive, como autoridade, um mecanismo de recusa e confronto com a realidade que seu próprio governo projeta aqui e ali. Sente poder em pôr-se à parte, prazeiroso. E, como confronta, ao mesmo tempo, o ministro da Saúde – parte de seu governo – a imunidade da sociedade, soa como depravação de um desejo. Ou seja, coloca libido nessas saídas que ferem a ordem das coisas. Não se trata de bestialidade ou degeneração: é um redirecionamento de energia para intrigas desnecessárias, mas que podem se tornar incontroláveis.

Ele sabe o que quer e calibrou a coisa para se isentar de culpa. Escolheu um meio termo entre negar e botar para quebrar. É meu direito de ir e vir, anda dizendo. Na verdade, é a hiper- excitação do poderoso confuso que expressa pela transgressão o emaranhado de dúvidas que tem sobre a dificuldade de decidir. Se ele pensa estar ajudando ao Brasil, que continue. Mas se não, que Deus o vigie.

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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