Novos rumos para a assistência ao paciente psiquiátrico
Fonte: psiconica.com
Entrevista com o Renzo Giraldi , Diretor da ASL3 de Nuoro Sardenha, Itália.
O Dr. Giraldi é médico formado pela Universidade La Sapienza de Roma, especialista em psiquiatria e analista transacional.
Há mais de um ano da entrada em vigor da LEI N. 10.216 DE 06 DE ABRIL DE 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e que redireciona o modelo assistencial em saúde mental (Lei Paulo Delgado), a assistência ao paciente psiquiátrico em Campina Grande não sofreu qualquer mudança. A entrevista realizada pela equipe da disciplina Psicologia Médica da UFCG, busca conhecer o tipo de serviço de saúde mental prestado ao usuário italiano, bem como colher algumas sugestões que possam auxiliar a Secretaria de Saúde de nosso município na implantação dessas mudanças tão necessárias.
PM – O senhor poderia explicar o que é a ASL, Azienda Sanitária Locale?
RG – A Empresa Sanitária Local (ASL) é uma organização sem finalidade lucrativa, financiada pelo governo e com a tarefa de prestar serviços de saúde à população de uma determinada comarca. O órgão público, proprietário da empresa nomeia um diretor geral, que recebe uma verba orçamentária anual destinado a ser usado nos serviços prestados a uma população determinada. O diretor geral utiliza tais recursos para a saúde de um modo geral e não só para o setor psiquiátrico da ASL. No caso de que tais recursos anuais sejam ultrapassados em mais de 10%, o diretor perderá seu cargo. A este sistema pertence o Departamento de Saúde Mental (DSM) de Nuoro do qual sou diretor.
PM – Gostaria que o senhor fizesse um resumo histórico da transição entre o antigo sistema de assistência ao doente mental e o novo programa assistencial que culminou com o fechamento dos hospitais psiquiátricos na Sardenha.
RG – Na onda de contestação ao sistema de tratamento psiquiátrico tradicional (modelo manicomial) chefiada por Franco Basaglia e seus seguidores, entre os quais me incluo, o Estado Italiano promulgou uma lei que impedia novas hospitalizações em manicômios a partir de 15 de julho de 1978 e a instituição nos hospitais gerais de serviços psiquiátricos de diagnóstico e tratamento. Tais serviços atendiam apenas aos casos agudos e não dispunham de mais de 15 leitos. O internamento não deveria exceder algumas semanas e o enfermo teria que ser devolvido à sua região de origem. Em cada região foram criadas Unidades Territoriais Psiquiátricas (UTP), dispondo de um centro de saúde mental, com ambulatório psiquiátrico, centro de psicoterapia, serviço social e estruturas residenciais ( casas famiglia, comunidades terapêuticas, oficinas protegidas, hospital dia e centros diurnos.
PM – O que são as casas famiglia (família)?
RG – Trata-se de pequenas comunidades de no máximo 8 a 10 membros, com as características de uma residência normal, inserida em uma região ou bairro. Nestas casas, o paciente pode experimentar, após toda uma vida de confinamento manicomial, uma situação semelhante a de uma família. A finalidade é prepara-lo para a volta a sua família de origem. A melhora dos hóspedes dessas casas “famiglia” é espantosa e imediata, provando que a maioria dos quadros psicopatológicos asilares é produzida pela instituição total, como dizia Erving Goffman.
PM – Quais os principais problemas encontrados durante o processo de transição?
RG – A resistência dos que trabalhavam nos manicômios foi o problema principal. Eles estavam fortemente institucionalizados e neste sentido, assemelhavam-se aos pacientes internados. O operador de saúde mental dos manicômios não queria renunciar a seu modo de trabalho nem tampouco se deslocar territorialmente com seus pacientes. O fantasma do desemprego, que nunca ocorreu, o fazia resistir. Nesta dialética foram mitificadas as idéias da periculosidade do enfermo psiquiátrico e do abandono dos pacientes crônicos internados.
PM – Quais os principais benefícios (para o paciente e sua família e para o Estado) desta nova abordagem da doença mental?
RG – Na fase inicial do processo de transição coube às famílias dos internados uma carga excessiva, ou seja, a de receber em suas casas pessoas totalmente inaptas a viver fora dos muros asilares. Isso ocorreu há vinte anos e não foi uma boa idéia fazer pesar sobre uma única instituição, a família, a responsabilidade sobre o enfermo mental. O resultado foi um conflito de interesses que continua atual, entre o doente que não deseja ser internado e a família que quer livrar-se de um peso. O Estado economiza com os novos modelos de assistência porque os custos dos manicômios podem ser transformados em uma assistência moderna baseada mais na terapêutica que na contensão e mais barata porque o internamento é a forma mais onerosa de tratamento.
PM – O senhor conhece a lei Paulo Delgado? Poderia fazer algum comentário sobre ela?
RG – É difícil colocar em poucas palavras todo o entusiasmo que a inovação brasileira me suscita. Depois dos vinte anos de experiência com a reforma italiana, ocorrem-me várias sugestões, muitos erros foram cometidos e gostaria que vocês não os repetissem. A chamada Lei Paulo Delgado é, como dizemos na Itália, um “marco” valioso e estabelece princípios gerais. A lei procura acabar com a discriminação que faz com que os pobres, portadores de transtornos mentais, sejam encerrados nos asilos, enquanto os ricos têm direito a tratamentos mais adequados, embora mais caros. Ela também defende os interesses dos pacientes psiquiátricos notadamente mais frágeis que outras categorias na defesa de seus direitos de cidadania. Acredito que a prudência no fechamento dos manicômios seja um pouco excessiva, mas poderia estar justificada diante das condições socioeconômicas brasileiras. Certamente, classificar o tratamento comunitário como preferencial é muito bom. Sabemos, em ambas margens do oceano, como o internamento em hospitais psiquiátricos não é terapêutico. Do ponto de vista técnico, acho apreciável a distinção entre internamento voluntário, involuntário a pedido de terceiro e judicial.
PM – Segundo sua experiência quais as sugestões que poderia dar às Secretarias de Saúde dos municípios brasileiros no sentido de tornar viável essa transição?
RG – O internamento em manicômios deveria ser excluído ou pelo menos reduzido ao mínimo possível. Deveria ser criada uma rede de assistência em postos de saúde, localizados em bairros, com equipe multidisciplinar (psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais), apta a realizar atendimento domiciliar em casos necessários. A criação de hospitais dia, centros diurnos e casas família voltadas para a reabilitação psicossocial também deveria ser uma das metas nesta fase inicial. Além disso, poderiam instituir uma espécie de subsídio para as famílias que desejassem acolher ex-internos, bem como para as famílias dos próprios pacientes que assim o desejassem.
PM – Sabemos que o senhor encontra-se atualmente a frente de um novo projeto terapêutico para o doente mental, que recebeu o nome de Projeto Pinóquio, poderia falar um pouco sobre isto?
RG – Pinóquio é uma fábula de Collodi em que um pedaço de madeira, magicamente animado, torna-se humano transformando-se em um verdadeiro menino. É a metáfora da desumanização causada pelo estigma da deficiência e a reaquisição das características humanas pelo deficiente, após um percurso de amadurecimento e crescimento. Um grupo de duzentas pessoas de nossa comunidade, com e sem transtornos mentais, participam de um espetáculo teatral e cinematográfico, vivenciando uma experiência de imersão na realidade virtual. Tais “atores” vão descrevendo o conto com novas idéias e palavras. Através de Pinóquio conseguem atar o simbólico, o real e o imaginário e com esta nova história reescrevem a sua própria, aproximado-se como o personagem , à humanidade, ao ego perdido ou jamais encontrado. Tem sido uma experiência realmente gratificante cuja estréia está prevista para março do próximo ano e que conta com a participação de diversos setores de nossa sociedade: estudantes, donas de casa, professores, diretor teatral, atores, cenografistas, profissionais liberais (médicos, psicólogos,juízes). Uma das locações do espetáculo vem sendo realizada no fórum da cidade de Nuoro.
PM – Muito obrigado pela excelente contribuição, principalmente pelo relato dessa última experiência que poderá servir como incentivo para que aqueles que ainda marginalizam o paciente psiquiátrico mudem de idéia. A esse respeito não poderemos deixar de falar do ocorrido em agosto último na cidade de Campinas, no estado de São Paulo. Alguns moradores de um dos bairros daquela cidade moveram uma ação na justiça contra o CAPS (Centro de Reabilitação Psicossocial) da Nova Campinas, mantido pela Secretaria de Saúde, alegando ser o bairro residencial. Com isso conseguiram lacrar o local acarretando graves prejuízos para os pacientes que ali recebiam tratamento exemplar. A justificativa não se sustenta, porque há vários anos o bairro já contava com um diversificado e intenso centro comercial. Para terminar, gostaríamos de pedir ao Dr. Giraldi para continuar nos pondo a par do referido espetáculo, do qual nosso curso de medicina espera ganhar uma cópia em fita de vídeo.