Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 22 de janeiro de 2011.
Os conservadores bradam: é um fime de esquerda que usa a doença para desmoralizar a mais importante líder liberal da história da Grã-Bretanha. A esquerda não deixa por menos: é um filme de direita, e usa a doença para polir o mais socialmente destrutivo e autoritário Gabinete dos tempos modernos. A biografia como propaganda é o que se discute na imprensa de todo o mundo. E assim, com apenas quatro cópias distribuídas em dezembro nos cinemas de Nova York – recurso usado para poder inscrever o filme ao Oscar – segue-se a tradição do cinema inglês de açucarar o acerto de contas dos britânicos com seu passado recente. Depois de “A Rainha” e “Discurso do Rei” é hora de ter pena, e quem sabe poder amar, a “Dama de Ferro”.
Em 1984 uma greve geral dos trabalhadores das minas de carvão chacoalhou o Reino Unido. Os mineiros, organizados na toda poderosa União Nacional dos Trabalhadores de Minas, enfrentaram uma senhora entrando nos seus sessenta anos e, de um duríssimo embate, saíram ineditamente derrotados. O fracasso dos sindicatos solidificava uma nova ideologia e pavimentava novos rumos para o país; sob a liderança emblemática de Margaret Thatcher, a primeira e única mulher Chefe de Governo dos ingleses. Chamada ao Parlamento, resumiu seu estilo implacável: quem busca o consenso, na verdade, negocia sua liderança.
Lady Thatcher queria fechadas não apenas as minas, que davam prejuízos, mas seu país mais uma vez aberto para o que de novo havia na fronteira econômica. Londres, caminharia para se tornar um moderno e dinâmico centro financeiro mundial, enquanto as atividades industriais esvaneciam, relegando grande parte do país ao relativo ostracismo econômico. A desindustrialização, impulsionada pela privatização, parecia a nova fórmula do progresso. Tornava-se cada vez mais barato e institucionalmente viável produzir no hemisfério sul. No hemisfério norte ficaria a inteligência por trás da produção (bem como o mais amplo consumo da mesma). Tal movimento, contudo, abriu profundas chagas na sociedade britânica, agravada pelas teses thatcherianas de que o Estado é o problema e o mercado desregulado é a solução.
Levando à ferro e fogo o liberalismo, Thatcher negou que houvesse direitos a priori, argumentando que “não há essa coisa a que chamamos sociedade civil”. Monetarista ao extremo tripudiava sobre os costumes trabalhistas : “ninguém se lembraria do bom samaritano se além de boas intenções ele não tivesse dinheiro”. E continuava : “O que há são indivíduos, homens e mulheres; e famílias. E nenhum governo pode fazer nada senão através das pessoas” e não de políticas sociais gerais. O laissez-faire que ela implementou, levando à financeirização da economia, concomitantemente ao governo Reagan nos EUA, é seu maior e mais polêmico legado. O que faz intrigante a forma como ronda o mundo certa fascinação com as idéias da dupla Thatcher-Reagan. Apesar da crise atual ser originada justamente da vida opaca e sem lei dos mercados financeiros.
Foram os russos que a apelidaram Dama de Ferro. Título modesto para quem ajudou a derrubar a União Soviética, considerava Mandela um terrorista, declarou Guerra à Argentina e defendia Pinochet de dedo em riste.
No Reino Unido a estréia do filme já lucrou três vezes mais do que “A Rainha”, filme sobre Elizabeth II, lançado alguns anos atrás, e que também causou frisson por retratar, da mesma forma, momentos delicados de um mandatário ainda em vida. Por sua atuação, Meryl Streep, que é abertamente contra as politicas que marcaram o governo de Thatcher, ganhou seu oitavo Globo de Ouro.
Nos EUA, o filme estreiou com o pé direito. De lá, onde as conturbadas primárias dos Republicanos já chegaram a ter pré-candidata se comparando ostensivamente a Thatcher, permanece clara a impressão de que, dentro do partido de Bush-Reagan, não há uma reflexão sóbria sobre a origem dos problemas que eles estão vivendo. Pois continua forte a percepção, nada criativa, de que o antídoto é um pouco mais de um velho veneno.
Quando Carol Thatcher, anunciou em 2007, que a durona da sua mãe – atual Baronesa de 86 anos – sofria de demência, o Reino Unido começou a escrever o roteiro cinematográfico que agora assiste. As provações da velhice e da doença atigem a todos. Mas só a dor de alguns vira cinema. O processo de envelhecimento pessoal e a fadiga do poder político que exerceu fez ironia com o ocaso da vida da rígida premiê. Personalidade complexa, capaz de tiradas do mais fino humor: “Se meus críticos me vissem andando sobre as águas do rio Tâmisa, diriam que é porque eu não sei nadar”.
Quem diria, que um dia, ela não fosse mais capaz de compreender o filme da sua vida ?
Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal por seis mandatos.
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