Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 10 de junho de 2012.
Cardumes, as nações viraram cardumes. Muito mais do que uma catástrofe, a crise que engolfa o mundo, e o leva em uma única direção, se aprofunda por conta da catastrófica gestão dos acontecimentos. Começou com a confusão acerca de suas origens, estimulada pelo sistema financeiro que a criou. Continua porque ninguém tem coragem de enfrentar a “vida boa” do dinheiro fácil e dos governos duros que estão derrubando o prestígio da educação, do trabalho e da democracia.
Na sua essência, a crise é uma crise do desequilíbrio da regulamentação por parte do Estado em todo o mundo. Desregulação nos Estados Unidos e na Europa; regulação antidemocrática na Ásia, Oriente Médio e África; má regulação na América Latina. O que leva a um aumento da desigualdade de renda nas regiões opulentas do globo e ao crescimento econômico a ferro e fogo nos países autoritários. E que perpetua-se pela insegurança e forte contração da produção e do poder de compra da maioria das pessoas. Essas características são responsabilidade do Estado: ou por conta da sua omissão, ou excesso de intervenção, ou uma angustiante indecisão política diante dos fatos. A tarefa central deveria ser: restaurar o valor real da economia e de preferência conseguir, durante o processo, resolver os problemas da política que criaram a engenharia do descompasso atual. Por isso, dizer que o problema principal é a dívida pública é um malicioso e maldoso subterfúgio. A não ser que o Estado seja completamente disfuncional – o que definitivamente não é o caso nos EUA e na Europa –, sua austeridade deve ser construída sempre com mais democracia e coragem para enfrentar erros e privilégios. Do contrario, a prosperidade sem justiça e liberdade pode parecer um modelo atraente. No contexto atual em que a demanda do setor privado e das famílias caiu a níveis que causam um corrosivo desemprego, a retração do Estado é um erro crasso com graves consequências sociais.
E essa discussão envolve um pouco o Brasil. O arranjo brasileiro, mesmo tendo seus vícios e lacunas, tem se mantido nos últimos anos na direção oposta aos fatores que caracterizam essa crise. Mas é sem sentido o sistema financeiro nacional ser, ao mesmo tempo, regulado e tão caro. E as políticas públicas que têm resultado na diminuição da concentração de renda no país continuarem voltadas só para o consumo. Assim, se o Brasil insistir na mania de só agir no curto prazo e não enfrentar o imediatismo do sistema político que impede a boa gestão pública – além de não considerar a educação e o trabalho como os principais fatores de produção – a qualidade do progresso da sociedade sofrerá reflexos nefastos. Crescerão, por exemplo, os problemas de oferta insuficiente ou inadequada de bens coletivos e duráveis, e ficará crônica a falsa responsabilidade dos construtores da infraestrutura física, que é sem qualidade ou inexistente no país. E poderemos desistir de mudar a superestrutura fiscal e tributária inconsistente que nos paralisa. É inegável que o governo usa os instrumentos que possui para não deixar a crise atingir o país, mas deve apostar mais na autonomia e na competição do setor moderno da economia e menos dependente do Estado, estimulando assim o verdadeiro capitalismo privado, de empresários renovadores.
Nadar como cardumes em direção a essa onda de falta de valores, aceitar o controle autoritário da riqueza da sociedade e exaltar o enriquecimento fácil de predadores sociais é a matriz da crise atual. É isso que agrava o problema da dívida na Europa e nos EUA, mantém o petróleo como principal fonte de energia e faz da China um modelo de desenvolvimento. Nesse contexto de crise em que a existência do consumidor está ameaçada pelo desemprego, a energia fóssil e obsoleta sustenta tiranias, e o capitalismo de Estado oriental manipula o comercio mundial, a dívida pública não pode ser uma obsessão. O pacto social prevê que o Estado promova o pleno emprego e ele não pode se furtar de lançar mão dos instrumentos que tem para fazê-lo. Não que a presença maior do Estado resolva tudo. Mas é necessário que ele aja quando tem que agir se quiser criar condições para que os cidadãos possam pagar suas dívidas com dignidade, como agora precisa a sociedade norte-americana e europeia. E não o Estado contribuir para aumentar a miséria, com recessão e desinvestimento, para manter alto o valor da dívida nas mãos daqueles poucos que enriquecem quando muitos fracassam.
Não existem escolhas fáceis, mas existem escolhas que levam mais a sério o sofrimento humano. Em geral são dois os caminhos possíveis para contornar uma crise: destruição e criação. A opção pela destruição é desumana e é obrigação de governo evitá-la.
(Continua no próximo domingo A liquidação do sentido : O desconforto)
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.
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