Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 26 de fevereiro de 2012.
Não é comum imaginar, atualmente, que uma crise econômica contenha uma teoria moral. O estudo da sua natureza e da escala humana de suas consequências não desperta mais tantos interesses espirituais, neste mundo de preocupações imediatistas e individuais. Quando a crise financeira tornou-se intensa, governos de todo o mundo se depararam com a questão prática sobre o que fazer para diminuir seus efeitos sobre seus países. Argumentos haviam de todas as feições. Nenhum identificava na perda da virtude cultural, no crescimento insustentável e poluidor, na improvisação e na conotação negativa dada ao esforço intelectual, fatores importantes para explicar o impacto que a ambição desmedida e possessiva fez cair sobre o mundo atual. Só razões econômicas e sua aritmética despontam no repertório de soluções. Não intervir nos mercados, para estimular a demanda e assegurar a circulação de moeda, foi a única opção não seguida nas principais economias do mundo. A distinção que há é entre os que intervieram muito e os que intervieram mais ainda. O certo é que o sistema capitalista, longe de dar sinais de fatiga, mostra fôlego para o deslocamento geográfico, e vai substituindo países e continentes, sempre fiel à sua sina expansionista.
No mundo atual, regido pelos impulsos primitivos da avareza e gastança, é difícil assegurar o presente sem que excessivos temores de longo prazo possam dispensar as mãos dos governos.
A forma como o progresso é feito e o dinheiro é gasto, os caminhos escolhidos para “salvar” a economia, a decisão de não produzir ou consumir qualquer bobagem, revelam escolhas políticas que pavimentam ou não um caminho para um futuro melhor. Mesmo adotando a lógica de que vivemos numa sucessão de curtos prazos, uma sociedade mais próspera só vinga quando consagra parte do pensamento do presente para construir teorias para seu futuro. E tal futuro nunca terá base em ideias exclusivamente econômicas, a ponto de que qualquer valor possa ser transformado em moeda e mercadoria, como vem ocorrendo.
Pouco depois da quebra do Lehman Brothers, ponto culminante da crise atual, a China, beneficiando-se de seu autocrático sistema de decisão, colocou em campo um pacote de estímulos de quase US$ 600 bilhões (a soma chega a US$ 1 trilhão, se incluídos os incentivos regionais). A ajuda financeira é proporcionalmente maior do que a liberada pelos EUA meses mais tarde. Não só maior, foi mais objetivo o pacote chinês: mirava decisivamente no aumento do gasto num país ainda não saturado de consumo (caso, aliás, semelhante ao brasileiro), enquanto o corte dos impostos americanos foi largamente canalizado pelas famílias para o pagamento de dívidas. De qualquer maneira, uma lógica delineava-se clara na (re)ação sino-americana: o Estado precisava entrar em campo para assegurar e proteger esse sistema produtivo que aí está. Mais do que apenas injetar liquidez numa economia aturdida pela especulação era fundamental resguardar e manter as atividades produtivas tradicionais.
Tudo isso se insere em um contexto antigo que tem ganhado novas cores. O sucesso econômico da China tirou do capitalismo a conotação insultante que lhe dava o marxismo e ajudou a tornar confortável o casamento Estado/Mercado. O mundo enxergado pelas nações mais poderosas é um mundo de competição, e aí, o passo econômico é o mais fácil de entender e perseguir. Mas o alerta vermelho já está acendendo: no leste asiático, embora seja gritante a bem-sucedida simbiose Estado-sociedade-empresa, a elite chinesa já se deu conta de que sem cultura superior não há economia superior que se sustente.
O mesmo sentimento ocorre em parte da Europa. O choque de realidade causado pela crise chacoalhou em seus berços esplêndidos sociedades abastadas. Que hoje enfrentam a realidade de que o curso da divisão internacional do trabalho também deixa sem emprego nações culturalmente evoluídas, mas que se mantiveram estagnadas intelectualmente. É este, infelizmente, o ambiente ideal para o fortalecimento de nacionalismos nocivos.
Enfim, é urgente buscar uma nova teoria do crescimento e outro figurino para o progresso. A riqueza do espírito é um desafio tão grande para as nações como sua riqueza econômica. Preocupa o fato de que a variedade de soluções construídas pelos países ainda não fez explodir ou despertar a inteligência inovadora e criativa que o mundo precisa. A mão visível do Estado acaricia a economia do futuro, mas parece, até aqui, não haver fortuna capaz de acionar a renovação cultural, que emancipa o povo e melhor o posiciona nas disputas do amanhã.
Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.
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