A vida do outro

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 20 de novembro de 2011.

Há alguma coisa interrompida na vida das nações que somente o resíduo de bondade que a humanidade tem não dá conta de resolver.

O primeiro Fórum Científico Internacional do Centro de Estudo SOUQ foi dedicado ao Sofrimento Urbano, Direito e Bom Governo. Nascido de iniciativas sociais na periferia de Milão, em torno do trabalho desenvolvido pela Fondazione Casa della Caritá, presidida por Dom Virginio Colmegna — que acolhe e assiste pessoas marcadas pelo mal-estar e pela angústia típicos de quem vive excluído nas grandes cidades —, o encontro reuniu experiências de todos os continentes. Girou em torno de alguns desafios: sofrimento urbano, direitos dos imigrantes, vida nos asilos, toxicodependência e o futuro dos jovens, desemprego, preservação dos valores coletivos, possibilidades de um governo técnico, político e social das metrópoles, restituição da consciência de cada um sobre a dignidade dos outros.

A população urbana cresceu exageradamente nos últimos anos e já se aproxima ou ultrapassa 50% da população total dos países, onde a maioria das pessoas vive na periferia. Benedetto Saraceno, psiquiatra genovês, que foi diretor por 12 anos do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirma que “de fato, a cidade, através de sua representação pública e de seus serviços às pessoas, de suas instituições, pode conviver de um modo dramaticamente cúmplice e irresponsável com os aspectos mais atrasados do medo e do processo de expulsão dos pobres, doentes, velhos, desempregados, drogados, jovens marginalizados”. Ninguém conseguirá praticar um bom governo nas cidades se não reunir todos os protagonistas de sua agitada dinâmica: agentes públicos, sociedade civil, organizações privadas e, especialmente, os mais diretamente interessados da comunidade urbana, que são os esquecidos e marginalizados, sem cidadania ativa.

O sofrimento urbano não pode ser enfrentado de forma exclusivamente sanitária ou visto como fragilidade psicossocial de seus habitantes. É certo que a cidade produz sofrimento na forma de doença mental. Mas é errado achar que a culpa é da má performance cerebral da vítima do desamparo. Pois existem outras patologias urbanas, que vão da exclusão à estigmatização, da marginalidade à vulnerabilidade. Formas contíguas, mas diferentes. São responsabilidades diversas, transversais, que descrevem, reescrevem e inscrevem a realidade complexa na ideia e no desejo de uma cidade viva, participativa e hospitaleira. O mundo talvez não se dê conta de que a maioria das cidades é cada vez mais poluída, fortificada, hospitalar e asilar. Isso sem contar a existência de verdadeiras cidades escondidas onde vivem as pessoas em pobreza extrema, abandonadas e que sofrem muito mais. As respostas repressivas aos problemas da marginalização agravam a discriminação e se tornaram parte inseparável — já insuperável, em muitos países — de sua compreensão.

Os estudos sobre o fenômeno urbano demonstram que boas políticas sociais e ambientais podem aumentar a qualidade e a esperança de vida para todos. Permanece, no entanto, a impiedade da regra urbanística: a esperança de vida em um bairro rico de Liverpool é a mesma do bairro rico de Nairóbi. Mas se a comparação for entre os bairros pobres das duas cidades, os quenianos são, evidentemente, mais pobres. O que reforça a necessidade de sempre associar democracia com justiça e oportunidade de mobilidade social, em qualquer parte do mundo. Apesar dos muitos problemas, o certo é que, em todas as cidades onde a população é convocada para ações públicas e boas práticas de intercâmbio social, tem sido possível superar a frustração. Desde que com base em propostas com desempenho conhecido, exemplos e evidências claras e não produtos prontos e impostos. É necessário também que esteja no horizonte a certeza da continuidade dos serviços e das ações. Assim é possível vislumbrar a criação de novas instituições que preservem a convivência e um certo modo de relação e valorização da identidade. E que sejam capazes de compreender o comportamento considerado desviante. Entender a força da diferença que distingue todos os seres humanos ajuda mais do que ocupar-se com as fraquezas que possam conter cada um.

Todas as experiências apresentadas pelos 32 relatores — especialistas e operadores sociais dos cinco continentes — nos três dias da conferência promovida pelo SOUQ, em Milão, estão centradas em dois princípios universais que andam meio esquecidos: todos têm o direito de não sofrer; todos têm o direito de experimentar a paz em suas vidas.

Muitos desafios enfrentam as cidades e já é hora de repensar o modo de governá-las e habitá-las. Onde não seja tolerado o direito débil, a cidadania frágil ou negada, a solidão induzida pelas políticas habitacionais e urbanísticas insanas, a mercantilização de cada ato sem sentido da vida diária.

Um estatuto antropológico das cidades pode diminuir o custo carregado da solidão urbana, onde cada um permanece longe e indiferente à vida do outro.

Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.



Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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