Desalinhamento Sul-Americano
Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 4 de março de 2012.
Não é possível dizer com segurança que as diferenças na inteligência humana são responsáveis por sociedades mais desenvolvidas tecnologicamente. Nem há provas de que são razões biológicas ou geográficas que permitem um Estado ser democrático, com um sistema judiciário respeitado e povo alfabetizado. Também não se pode falar que a maldade da história nos deu um opressor estrangeiro tão especial que é um destino viver eternamente dominados. O certo mesmo é que o padrão de desenvolvimento político tem sempre mais a ver com o papel que os indivíduos decidiram desempenhar nas suas sociedades do que com qualquer outra explicação ou desculpa ambiental, geográfica ou histórica.
Não é somente a confrontação constante entre a política e a imprensa, os governos e os meios de comunicação, a instabilidade democrática ou a intolerância com a livre expressão que continuam marcando a América do Sul. É igualmente baixa a densidade da política externa, sempre pressionada pela tensão entre as prioridades internas do poder político e a diversificação crescente dos atores internacionais. Somados a isto, o baixo dinamismo do mercado interno regional pouco permite que a economia se desenvolva com autonomia tecnológica e de capital, deslocando-se definitivamente da manipulação política.
Falta substância ao mito da autonomia regional e suas peculiaridades insólitas. Subsiste uma espécie de solidão do extremo ocidente, reforçada pelas dificuldades que a distância entre o Atlântico e o Pacifico nos acrescentam. Mas ainda assim, como não são superados nem os problemas de isolamento entre os países que têm fronteiras comuns, não é possível dizer que a culpa é da geografia. A marca da ruptura é maior do que a da continuidade em toda a política regional, diminuindo a força que governos democráticos e centralizados têm na evolução positiva das nações.
Mesmo quando há convergência entre interesses governamentais e empresariais, como passou a ocorrer recentemente, a lógica que prevalece é sempre a bilateral e protecionista, sem foco internacionalista ou liberalizante. Há um fio condutor de má diplomacia econômica que acaba confinando boas ideias multilaterais de expansão comercial, aberta e sem barreiras, em ações nacionalistas, protecionistas, isolacionistas.
Região fortemente presa ao mandonismo, a América do Sul não aceita compartilhar soberania política. Assim, pouco se beneficia dos processos constantes de abertura de alianças no mundo multipolar, continuando insensível e impermeável às ideias de governança coletiva e à globalização econômica. Com isso parte do mundo está fora da percepção e das iniciativas regionais. Predomina entre seus governos a busca primária da identidade comum pela afinidade ideológica, já que as estruturas jurídica e políticas continuam instáveis e funcionando por lógica interna à região, meio de costas para o ambiente internacional. Mesmo com a adesão à agenda internacional de defesa dos direitos humanos, desnuclearização, regras de livre comercio, etc, permanece forte grau de imprevisibilidade na sua aplicação. Especialmente na área de Defesa continental, onde cada país compra o equipamento que bem entende, buscando mais prontidão permanente do que dissuasão, sem dar bolas para a percepção hostil que tais movimentos provocam entre vizinhos. As iniciativas de integração política aumentaram, coincidindo com a diminuição da presença ativa norte-americana por aqui, mas o peso das estratégias nacionais e bilaterais ainda predomina, especialmente na área comercial, onde a atuação da China já é a de um novo ator fragmentador da unidade regional.
A marca da América do Sul continua sendo a do desalinhamento, apesar das tentativas do Brasil se fazer cooperativo, menos distante, simpático e útil. A notória assimetria entre as economias ajuda a explicar o crescimento da participação brasileira no investimento e financiamento de empresas e obras de integração em diferentes países. Mas não se pode dizer que esta nova configuração, muito recente, assegure uma política de longo prazo. Como os arranjos políticos e institucionais são fortemente marcados pela simpatia entre governantes, nunca está descartada a possibilidade da generosidade estratégica brasileira ser considerada inoportuna, ou imperialista, e provocar tensões internas “nacionalistas” que nos obriguem a recuar.
Nesse quadro, o Mercosul continua uma ideia mais simpática do que efetiva diante do excesso de protecionismos e barreiras comerciais de todos os lados. Regras estáveis e partilhadas só serão mais efetivas quando a retórica política da integração for substituída por uma agenda econômica da expansão do mercado comum, onde todos, efetivamente, ganhem. Especialmente os países e as pessoas mais pobres.
PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.