Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 26 de Junho de 2016.
Não é democrata o governante que, inseguro ou demagogo, pergunta ao povo o que ele já sabe a resposta. David Cameron, primeiro ministro da Grã-Bretanha, transferiu para os ingleses a tarefa de errar, e dar um tapa na cara da Europa, ameaçando o mundo com mais instabilidade e egoísmo.
Quinta-feira de fortes chuvas, relâmpagos e trovoadas emoldurou o cenário, da Irlanda do Norte até Lincolnshire, banhada pelo Mar do Norte, e dali para o sul da Grã-Bretanha, até o Canal da Mancha. Foi apenas o terceiro plebiscito da história do Reino Unido. Para uns, um belo teatro armado por políticos oportunistas, de olho na suscetibilidade das pessoas, diante do uso do medo e da aversão às dificuldades. Para outros, exercício herdeiro legítimo e direto dos que impuseram a Magna Carta ao mau soberano.
Observando atenta, cheia de dedos, sem poder muito influir em algo que lhe impactaria visceralmente, a União Europeia, velha jovem senhora, agora desprezada oficialmente. Para a curta história dessa instituição estranha e bela, poliglota, sediada em Bruxelas, foi certamente não apenas um dos plebiscitos mais tensos, como também um dos mais lúgubres. Já o era desde antes do resultado. A concretização da ameaça de rompimento, pode, na melhor das hipóteses, fortalecer seu núcleo duro. Uma União Europeia (UE) que venha a sair do escrutínio, que pôs à prova a relação entre a ilha e o continente, mostrando, sem sofisma consciente, que uma não depende da outra.
A percepção de que o Reino Unido reclama demais e não reconheceu os benefícios trazidos pela UE caminha para se desconstruir, pois fizeram o que sempre foram acusados de querer fazer. Sendo otimista, o discurso que pode agora nascer não só se prestaria à propaganda do lado europeu, quanto à agenda britânica de redesenhar seu lugar no mundo. Todavia, a continuação da ausência de trégua com o avanço do extremismo, que insufla tais vagas para arrebentação não só da UE, mas de qualquer união entre os países, indica tempos sombrios para o mundo.
A ideologia britânica moldou caminhos, decisões e regras do que hoje é a principal experiência de cidadania ancorada em união política e econômica internacional do planeta. Ainda que inegável a influência de seus valores característicos na construção ali alcançada, Londres queria menos convergência política e cidadania. Queria o mercado. E mesmo ele, sem a moeda. Os britânicos não queriam que a UE se transformasse num superestado. O permanente e impregnado euroceticismo sempre fez do Reino Unido o causador habitual de importantes obstáculos ao avanço da união entre os países.
O Reino Unido sempre gostou de deixar subentendido que era a voz dos EUA dentro do grupo. Por tal, nunca escapou de desconfiança por um lado e zombaria por outro. O então primeiro-ministro Tony Blair chegou a ser achincalhado como sendo o poodle de Bush. Entretanto, de fato, a piada atribuída apocrifamente a Kissinger, de que não se sabia para quem ligar quando se queria conversar com o tomador de decisão na Europa, se sustentava apenas, até o momento, em que se ligava para o número 10 de Downing Street. O papel britânico era de ser único na UE e, agora, poderá tentar voltar a ser único no mundo.
Para o Reino Unido, a Europa é sempre vista como terceiros. O continente é uma coisa, a Europa. A ilha é outra, o Reino Unido. A Europa é lugar de férias, de descontração. Entretanto, o orgulho de maior colonizador do planeta, que fez a Inglaterra esnobar as futricas continentais e ganhar mundo, espalhando um capitalismo industrial e financeiro de base filosófica britânica, hoje não deixa de enfrentar uma conjuntura que, esnobar o tumultuado continente, é algo muito perigoso. A Inglaterra fora da União Europeia caminhará para uma posição de influência marginal no mundo. Ricos, felizes e seguros. Todavia, sem dar um pio nos desígnios do planeta. Nova Suíça, nesse novo mundo de proporções chinesas. Pode ser isso que a maioria mandou dizer à rainha: o que queremos daqui para frente. Triste sina de um país que é o principal responsável institucional pelo mundo em que vivemos.
É sempre meio vulgar opinar com veemência sobre escolhas feitas em locais onde não se vive o dia-a-dia. Mas estamos falando da terra dos Beatles, Shakespeare, Jane Austen, Churchill, Dickens, Lady Di, que inundaram nossas vidas algum dia. Se a política é a arte do possível, a democracia é, entre suas mais importantes manifestações, a que mais anda dissociando a ética da estética. A cara da democracia é fluida. Cada vez mais fluida.
A ferida na unificação europeia é um alerta para quem pressente que a dilaceração de um país pode bem ser o início da dilaceração de todos.
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PAULO DELGADO é sociólogo.
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