Entrevista Tribuna da Imprensa
Tribuna da Imprensa – Fernando Sampaio
Esqueça tudo o que o PT já disse e pregou. O partido se rendeu ao pragmatismo político, deixando para trás posições históricas que fizeram parte da fundação do programa da legenda. Prova disso aconteceu em Minas, na eleição de outubro passado: no mesmo palanque se viu o presidente Lula e o ex-governador Newton Cardoso, tentando se misturar apesar de serem água e óleo.
Foi por esses e outros erros que o deputado federal Paulo Delgado (PT-MG) não se reelegeu. Depois de 20 anos na Câmara, desta vez se viu engolfado com a falta de distinção entre os políticos, conforme mostrou a última eleição. Pior para os parlamentares ditos “de opinião”, que foram ignorados pelo eleitor.
“Sempre tive prestígio, porém uma base de poder insignificante. Nunca projetei poder e a força da influência de opinião é muito pequena num partido de tendências como o PT. E como não mobilizo pessoas internamente para participar de correntes de opinião, fui perdendo influência. Minhas críticas foram se tornando sem função partidária. Paguei um preço alto por esse culto”.
TRIBUNA DA IMPRENSA – Como analisar a questão de políticos de opinião, como o senhor, o deputado Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ), entre outros, não terem sido reeleitos?
PAULO DELGADO – O que deve decidir a posição política de políticos progressistas é sempre a reflexão crítica, e mais o senso de dever, que é o senso de interesse, porque política não pode ser mero exercício do poder. Então, numa campanha onde não houve um tema convocante e uma bandeira política clara, de mudança, de modernização da sociedade brasileira, é muito difícil ajustar candidaturas de opinião, de políticos que não estão procurando emprego, e sim o mandato popular ter sucesso.
Acho que essa foi uma das maiores características dessa eleição: teve uma função meramente rotineira, da rotina do sistema democrático. O que não é ruim, mas não contribuiu para propagar ou consolidar nenhuma das virtudes públicas do sistema democrático. Pelo contrário, surgiu nessa eleição um intermediário entre o candidato e o eleitor, e esse intermediário, que foram os prefeitos, os vereadores, os líderes eclesiais, comunitários, e até os deputados estaduais e federais ricos. Essa intermediação política impediu o debate entre o candidato e o eleitor.
Foi de todas as seis eleições parlamentares que disputei a pior em termos de debates, de propostas. Um outro aspecto, aí particularmente relacionado com a campanha em Minas, em que a política de alianças que o PT fez no Estado foi mortal para candidatos de opinião. O PT se aliou a setores políticos dos mais tradicionais e reacionários do PMDB e tirou o espaço da consciência crítica partidária. Com isso, sumiu a distinção entre um político de opinião e um político meramente pragmático aos olhos do eleitor. Era impossível fazer campanha política de opinião num palanque tão pragmático e sem objetivo progressista ou transformador.
O que estava em discussão no palanque mineiro que o PT formou era exclusivamente a renovação de mandatos parlamentares ou a conquista de mandatos, sem nenhuma preocupação de fazer avançar o sistema político, ou essa eleição se inscrever num processo de renovação da democracia no nosso País.
Em relação ao aspecto da eleição mineira, a coligação que o PT fez em Minas atou ao ritmo e ao rumo da campanha valores em que não predominava a visão de mundo de um partido moderno, transformador. E acabou tendo um componente eleitoral homegêneo, sem possibilidade de inscrever a campanha no processo de fortalecimento da democracia. A história do PT tem que estar orientada pela idéia de que a política é o possível, mas não precisa ser o imperfeito e nem o injustificado.
O eleitor continua sem poder de discernimento?
O eleitor, de uma certa maneira, reage como o seu líder lhe apresenta a questão. Se for proposto ao eleitor brasileiro um debate programático e um processo de reflexão sobre os caminhos para a sociedade, em que valores mais estruturantes e progressistas sejam o tema do debate, o eleitor tem sido um aliado do voto progressista no Brasil. O sistema eleitoral tem mais virtudes do que defeitos. O problema é quando predomina na relação com o eleitor a troca de favores. Esse fisiologismo político em que o eleitor acha que o candidato está atrás de emprego e o eleitor está atrás de benefícios.
Nesse aspecto, o debate sobre legislação nacional, os problemas que nos afligem, desaparecem do cenário. Mas não é culpa do eleitor: o eleitor não é o Poder Judiciário, a burocracia partidária, a estrutura de poder do País. O eleitor reflete, embora seja a base da legitimidade do poder, os candidatos que lhe são oferecidos pelo sistema institucional. Se o candidato foi aprovado pelo partido, pelo Poder Judiciário e as instituições legais do País para se apresentar diante do eleitor, cabe ao eleitor dizer sim ou não ao candidato. Ele reage conforme lhe é apresentada a política. A publicidade retirou da política essa substância mais profunda.
Qual a explicação para esse fenômeno de políticos envolvidos em irregularidades, principalmente do PT, terem sido reeleitos?
Se o sistema de poder, seja o Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário, não puniu os cidadãos que se apresentam ao cidadão como candidato, não se deve pedir ao candidato que cumpra uma função que é das instituições estáveis. E é das instituições permamentes que recebem recursos públicos para serem eficientes e capazes de julgar o delito e considerá-lo crime, e até punir os infratores. No Brasil não é tradição tratamento político do erro como erro. Na verdade, o erro no Brasil não se chama erro em política. Ninguém é punido pelo fato de errar em nosso País.
Se cobra do eleitor essa punição. E muitos candidatos que se envolveram em delitos e em comportamentos delituosos reagem diante do eleitor como se esperassem gratidão. Solicitam do eleitor uma compreensão familiar. E como o eleitor ainda é fortemente patrimonialista e comunitário, o cidadão reage como se tivesse arrumando um emprego e dando um título de gratidão àquele que foi punido.
Em muitos aspectos, o voto não é um fator de socialização. Quer dizer: a escola não é um fator de socialização, o voto não é um fator de socialização de uma maneira geral. E a expressão clássica disso é votar para resolver problemas pessoais e não para resolver problemas nacionais.
Cada vez menos os candidatos independentes têm condições de se eleger no PT?
Um dos grandes problemas do PT é que nasceu como um partido de mudança e sustentado por três grandes forças que o impulsionaram. Em menos de 20 anos se tornou o primeiro partido brasileiro quando elegeu o presidente da República. Primeiro foi o apoio dos intelectuais, no sentido amplo, orgânicos, de todos os setores sociais do campo e da cidade. Não só os intelectuais universitários, mas os intelectuais trabalhadores qualificados nas instituições brasileiras, nas áreas urbanas e mobilizados na área rural, como também eclesiásticos de todo tipo. O segundo, foi a liberdade de imprensa. A grande divulgação positiva que a imprensa deu às atitudes do PT e dos seus líderes, principalmente quando criamos a idéia do modo petista de governar. E o terceiro foi a ética, a idéia de que o PT era o guardião da virtude pública, e que nós teríamos essa função quando chegássemos ao poder.
No entanto, nós chegamos ao poder do Estado federal, da União, passando pela pior escola da política brasileira, que é a escola municipalista. E ali, na escola municipalista, onde a vitória de um líder não consolida sua posição permanentemente, com raras exceções, não se cria uma cidadania plena nas cidades brasileiras. E aí os líderes políticos nacionais, de uma maneira geral, são voláteis nas suas convicções. Essa escola não exigiu do PT aperfeiçoamento de gestão pública, modernização de métodos de trabalho. Exigia exclusivamente capacidade de mobilização de correntes de opinião dentro da cidade e vitória eleitoral.
Quando nós chegamos na disputa nacional, essa nossa escola foi insuficiente, e caímos inteiramente na publidade. Para mim, o grande mal do PT atual é isso que envolve o petismo no governo: aceitar a publicidade como um elemento central da política, e não projetos e programas de governo. A publicidade no Brasil manifesta o ridículo da ética e tirou a estética da ética política. É preciso abolir o mito explicativo do marqueteiro ou, no futuro, os candidatos não serão mais necessários.
O senhor disse ter sido vítima de suas próprias posições. Por quê?
Sempre tive prestígio, mas uma base de poder insignificante. Nunca projetei poder, e a força da influência de opinião é muito pequena num partido de tendências como o PT. E como não mobilizo pessoas internamente para participar de correntes de opinião – porque as correntes de opinião dentro do PT também passaram a se mobilizar por posições políticas e não por utopias e propostas; e mais por propostas internas de poder -, fui perdendo influência. Minhas críticas foram se tornando sem função partidária. Então, paguei um preço alto por esse culto.
Há um custo político da insolência e a política não reserva dádivas para os insolentes. Essa é a minha exposição imprudente, embora ela tenha tido longevidade. Tive 20 anos de mandatos, cinco mandatos, com essa posição insubmissa dentro da estrutura interna do poder. Agora, quando o partido começou a prestigiar internamente mais cargos do que opinião, mais aliancismo interno e amizade do que hierarquia ou influência social, fui perdendo essa queda de braço com o pragmatismo interno no PT. Hoje já há um sentimento interno no PT sobre essas sinecuras arcaicas, em que você premia pessoas internamente por causa do bom-mocismo. Um partido de esquerda não tem que premiar por mau comportamento.
Outra característica dos meus mandatos é que nunca tive a ambição como incentivo para as minhas opiniões e para o meu trabalho. Então, nunca pude ser acusado de desleal por isso. Tudo o que digo internamente digo publicamente e fui ficando incompatível e deixando de ser compreendido. Estou lutando para que o PT mude essa posição. Só acho inaceitável pretender amparar na fidelidade partidária o erro da direção.
No PT, a disputa pelos apoios passou pela intermediação das tendências internas?
Claro, esse é um problema. A organização de tendência do PT se tornou disfuncional para um partido de governo. Serviu para fazer o PT arregimentar quadros na esquerda, nos intelectuais e na ampla massa de trabalhadores, da sociedade. Mas, depois, como um partido de governo, a divisão interna do PT acabou atrapalhando o governo. E essas disputas de tendências foram tragando, consumindo, pela vaidade da luta interna, a objetividade em relação ao próprio partido. Então, há uma resistência funesta dentro do PT a pessoas que têm opinião independente. E isso é contra-senso em relação ao PT original. Com isso, hoje se você não se ajustar dentro de uma corrente interna…
Eu luto sempre dentro do PT para que você não tenha mais o direito de corrente interna, porque, na verdade, são partidos políticos dentro do PT, que consomem energia interna. O ideal é que você tivesse um partido no qual as tendências pudessem se organizar somente nos períodos eleitorais internos. Vencida a eleição por uma corrente, as outras se dissolveriam na maioria. E você teria um partido de unidade interna.
Outra coisa é que um partido de esquerda moderno deve estar sempre aberto à sociedade. Deve ter interlocutores e não só ouvintes e admiradores. Deve ser também regido pelas leis da sociedade e não pelas leis do PT. O PT não pode ser uma instituição total, fechada, manicomial, que produz suas próprias leis. Porque, senão, tem que começar a aplicar a Lei das Licitações e a Lei de Responsabilidade Fiscal dentro do PT. Dar direito a todos os petistas também de se beneficiarem do sucesso comercial do partido.
Vejo como muito preocupante essa dificuldade de o PT se ajustar às questões mais modernas e atuais dos debates da sociedade, na qual a realidade avança muito mais do que a teoria.
Qual o seu diagnóstico sobre o PT envolvido em tantos escândalos?
O PT tem que se reconhecer na sua história como um partido resultado do progresso do Brasil e do papel que as instituições tiveram para acolherem um partido como ele e aceitar as influências que o PT produziu na sociedade brasileira. O núcleo significativo da política petista não pode ser essa mania de grandeza do PT, ou quando o PT vai bem, ou essa mania de perseguição quando o PT vai mal. O PT tem que ter respeito pela alma da experiência original do partido. Somos um partido social-democrata da esquerda, popular. E temos que aceitar a intervenção crítica na burocracia partidária, o empreguismo partidário.
Especialmente essa idéia de no governo de coabitar com setores que devem contas à sociedade, e muitos que querem limpar a sua história, sujando a história da maioria dos petistas que não estão envolvidos em delitos e não foram acusados de nada.
Ou seja, essa limitação de espírito público em relação a um partido, especialmente quando chega no poder, é que faz com que nós tenhamos privilegiado mais carreiras políticas do que comportamento, propostas e programas. A fonte principal do PT é a reputação e não os cargos que oferece. Tem que lutar para que o Estado seja forte, eficiente, mas não necessariamente seja um Estado de petistas.
O PT não pode usar o seu patrimônio moral para errar. E como partido de esquerda deve contribuir para redefinir os sistemas de valores, dando a eles caráter coerente ou lógico. Definir-se como social-democrata de esquerda, vincular-se às correntes mais modernas da esquerda internacional, através da Internacional Socialista. Voltar ao parlamentarismo como sistema de governo e estar sempre procurando dar solidez ao esforço de consolidação institucional do nosso País.
O PT deve ser contra a apropriação privada da política e lutar nesse segundo mandato para mudar essa realidade e a perda de confiança na política como atitude democrática. A política não pertence aos políticos. A política pertence à sociedade e aos cidadãos.
Como o senhor vê as alianças eleitorais e o conseqüente loteamento da máquina pública?
Acho que está esgotado o modelo do presidencialismo de coalizão e de coabitação criado no final dos anos 80, que passou por todos os governos dos anos 90, chegou ao nosso governo e está se configurando de novo como política de produção de base parlamentar no nosso segundo governo. Essa idéia de dividir o Estado para conseguir estabilidade política, e dividir o Estado entre políticos para conseguir estabilidade política com preço alto, é um erro. Sem um projeto convocante de toda a sociedade, a política vai se deslocar cada vez mais do centro de reflexão da sociedade em que nós vivemos. E o povo não vai se interessar por esse tipo de política. Acho que o PT teria que ter um compromisso com a modernização do Estado e o sistema de produção de poder no Brasil.
“Tudo é política, mas a política não é tudo”, já dizia o pensador italiano Norberto Bobbio. Ou seja: há um componente cultural, civil, familiar, comunitário. A política é bem comum e não distribuição de cargos entre partidos e pessoas. Vejo que para produzir autoridade, vigor e força, é preciso que o governo tenha capacidade de envolver os partidos políticos e os parlamentares em propostas de modernização da sociedade, e não na distribuição de cargos para aliados. Predominam no Congresso pessoas de bem, parlamentares de todos os partidos que expressam claramente esse sentimento de mudança que a sociedade quer.
É preciso que o governo também não seja anti-parlamentar. Não tenha também preconceito de imaginar que só se recruta no Parlamento deputados fisiológicos, que não tenham senso de dever e honra pessoal. A maioria do Congresso pode servir ao País sem precisar de cargos e posições. Tenho certeza disso.
E seus planos para o futuro? Pretende sair do PT?
Meu objetivo, como um professor e cidadão, é participar do debate nacional, mais por senso de dever do que com o objetivo de exercer uma influência ou produzir, infligir algum tipo de dano aos meus contendores. Acho que a eleição, de certa forma, depois de 20 anos de mandato, ajuda a acalmar meus desafetos, né? E aplaca a inveja que pode ter se construído em torno de mim. Vou começar de novo, evidente, com toda a tranqüilidade e experiência que esses mandatos me deram, e espero poder contribuir para que a esquerda brasileira, os partidos de esquerda e também o PT tenham posições doutrinárias predominantes. Porque se você só tem atitude de combate e não tem doutrina, se torna um gângster.
Então, é preciso combinar a atitude de combate que as posições progressistas têm que ter com respeito pela opinião dos outros e por forte fundamentação doutrinária, baseada na razão, na informação e na história brasileira. Pretendo não ser desatencioso com os meus críticos e também participar desse debate de maneira mais ampla possível, onde eu for chamado. Seja na universidade, nos partidos políticos, nas organizações da sociedade civil. Seja onde eu puder contribuir com as minhas idéias, reflexões sobre o Brasil, estarei aí à disposição.
Continuo no PT, mas vejo o seguinte: o PT tem que reconhecer que precisa de um processo de modernização interno muito forte. Hoje, tem uma desinstitucionalização do petismo e um fortalecimento muito grande do poder interno do PT, baseado em acordos de direção. O partido tem que abrir os processos modernos da esquerda internacional. Tem que ter uma lógica racional superior à lógica passional. É importante que a política seja vista como paixão, mas quando nós temos responsabilidade de governo, tem que ser vista como razão e não pode ser manipuladora.