Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 21 de setembro de 2014.
307 anos depois a Escócia parecia cansada da união estável que é viver ligada ao Reino Unido. Sinal dos tempos, onde vai desaparecendo o casamento por amor e o número de divórcios já é quase igual ao dos casais que permanecem juntos. O orgulhoso império britânico, desbravador do mundo, foi obrigado a se medir com a régua de cálculos comezinhos e para obter o “NÃO” à separação, ofereceu a lógica da melhor aposentadoria para todos os seus súditos. Uma “bolsa Escócia”, como diríamos por aqui. É claro que dividir o poder pode ser visto como sinal de democracia madura em uma sociedade esclarecida. Mas não era brincadeira, “uma vez feito, estará feito”, alertou o ex-primeiro-ministro Gordon Brown, buscando adicionar um quê de tragédia Shakespeariana, respondendo chantagem com chantagem.
Brown é escocês. Tony Blair, que o precedeu, também. Uma boa parte dos principais líderes políticos da Grã-Bretanha nasceu naquela porção de terra acima do rio Tweed e do fiorde de Solway, fronteira histórica entre os dois principais países do Reino Unido. Justamente, uma das questões apontadas para o crescimento atual da insurgência local é o fato de que os melhores quadros políticos escoceses preferem fazer carreira em Londres. E deixam Edimburgo nas mãos de políticos populistas e seus marqueteiros desmiolados.
A expansão do comércio nos ombros da Revolução Industrial fez do Reino Unido um império ímpar que espalhou seus ideais de economia política pelos quatro cantos do planeta. E nos anos dourados do império, eram os escoceses que, relativamente, mais exerciam as principais funções de gestão da fartura contida nos cofres da secular Britânia.
A História segue seu rumo, e hoje o Reino Unido é um país que tem um PIB nominal bem próximo ao brasileiro (aliás, se o “SIM” tivesse vencido, o Brasil reassumiria o posto de sexta maior economia do mundo, passando o eventual Reino Unido diminuído). Assim, mesmo quando suas polêmicas vêm apoiadas em discurso nacionalista não há mais vigor de quem projeta poder. A urgência da má política é igual em todo o mundo: o local, o pessoal, o ordinário da vida. Mas esse ímpeto perdido vai aparecendo em outra parte.
Na mesma semana o presidente chinês visitou o primeiro-ministro indiano no dia do seu aniversário. Uma data selecionada a dedo para reunir durante três dias, duas pessoas que detêm poder sobre o dia-a-dia de dois bilhões e meio de pessoas. É verdade, mais de um terço da humanidade. Fora acordos de investimentos que giraram em torno de cem bilhões de dólares entre o curto e o médio prazo – alinhadas a complicadas promessas de buscar resolver problemas de fronteira comum e estreitar laços gerais – as tratativas entre o maior mandatário chinês, Xi Jinping, e seu equivalente indiano, Narendra Modi, forjam uma relação que é crucial no longo prazo do desenvolvimento e da estabilidade globais. Afinal, tudo leva a crer que a importância e a capacidade de exercer influência de China e Índia, que já foram englobados pelo Império Britânico, caminha para ser uma realidade.
É só observar a diferença de preocupações que delineia a realidade de uma potência europeia como o Reino Unido e a de potências asiáticas como China e Índia, para ver como migra a passos largos o núcleo da relevância e do poder da Europa para a Ásia. Na Ásia se constrói a realidade futura, com tensões expansionistas. Na Europa, administra-se uma situação estanque e problemática onde a consulta escocesa simboliza o enfado no seio de um Estado-nação que já dominou países em todo o planeta. Podendo a rainha da época se gabar de que o sol nunca se punha no seu Império.
Assim, no momento atual, em que há uma crise global que vai muito além de decisões técnicas sobre como governar, o desenho do futuro é delineado por quem tem vigor de longo alcance, é crítico, tem paciência e uma noção orgulhosa – dificílima de definir, uma vez que próxima de mais pura epifania – sobre o direito e a legitimidade que é ousar governar os outros. Algo que sempre se aproxima da direção que dá razão de ser, a ideias, a valores.
Esse encontro entre os líderes máximos dos dois maiores países do mundo, após um hiato de oito anos desde a última visita de um chefe-de-estado chinês à Índia, traz o inequívoco traço de uma China consciente e consistente. Começando a levantar acima da linha da cintura a pedra de poder, com o cuidado que o conhecido ditado chinês aconselha: não tente levantá-la até ter a certeza de que ela não cairá em seus pés. No Reino Unido, por outro lado, estão, consciente ou inconscientemente, retornando ao chão a pedra que ergueram bem alto por muito tempo.
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PAULO DELGADO é sociólogo.
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