Escolhas Irreversíveis

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 23 de outubro de 2011.

“O mercador da morte está morto.” Quando Alfred Nobel sentiu o privilégio que é ler em vida a notícia da própria morte, não gostou de saber como andava sua reputação. O químico sueco, que fez sua fortuna ao inventar a dinamite e fabricar explosivos, leu seu obituário num jornal francês que o confundiu com seu irmão, morto em Cannes dois dias antes. Disposto a não ser lembrado pelo mal que sua invenção fez à humanidade, colocou sua riqueza a serviço da mais poderosa filantropia humanitária em forma de prêmios que temos no mundo. Há exatos 110 anos, o Nobel continua marcado por saudáveis desencontros e polêmicas, nas áreas das ciências, da literatura e na luta pela paz.

Não foi pela Teoria da Relatividade, a mais importante descoberta da física desde Isaac Newton, que Albert Einstein ganhou o Nobel. Também não há prêmio Nobel da Paz de 1948. Pois o comitê norueguês que o concede, tão rápido em homenagear dissidentes em todo o mundo, preservou-se da ira britânica e fingiu não entender o princípio da não violência de Mahatma Gandhi, idealizador do Estado indiano e maior símbolo da paz do século 20.

Quando se deram conta da lerdeza em compreender sua luta, o líder da independência já estava assassinado em Nova Délhi.Vinte e cinco anos depois, em 1973, foram apressados e mais uma vez incompreensíveis. Dividiram o prêmio da Paz pelo fim da guerra do Vietnã, ainda não encerrada para os asiáticos, entre o tortuoso norte-americano Henry Kissinger, que não o merecia, e Le Duc Tho, do Vietnã do Norte, que o recusou.

Recusar o prêmio Nobel é uma das mais espetaculares notícias do mundo. Além do líder vietnamita, somente mais dois laureados a escreveram, por motivos diferentes. Doutor Jivago, romance de Boris Pasternak, proibido na União Soviética, foi publicado no exterior. Vencedor do Nobel de 1958, o russo foi proibido de recebê-lo por pressões políticas do governo Kruschev. Perseguido, posto no ostracismo, morreu dois anos depois. Em 1964, Jean-Paul Sartre, o filósofo da liberdade da palavra e do ato, também recusou o prêmio dizendo que “nenhum escritor pode ser transformado numa instituição”.

Os critérios para consagrar escritores, narradores, romancistas e poetas vão desde o fixado pelo próprio criador do prêmio—“um autor de qualquer país mais extraordinário em sua direção idealista” — até os atuais parâmetros de qualidade e importância cultural. Em2006, por exemplo, embora a extraordinária beleza dos livros Istambul e Neve seja suficiente para consagrar o romancista turco Orthan Pamuk, o Nobel de literatura lhe é concedido depois que o escritor se revela um corajoso denunciante da história secreta de seu país, responsável pelo massacre dos curdos e por um dos maiores genocídios da história, a morte de um milhão de armênios pelo Exército turco, na 1ª Guerra Mundial.

Há casos admiráveis de boa sorte, como a do Nobel de 2000. Exilado chinês, o escritor e artista Gao Xiangjian, hoje cidadão francês, tem como tradutor para o sueco um professor de Estocolmo, especialista em China. A página oficial do comitê (nobelprize org) informa que o professor Goran Malmqvist, por coincidência, também é jurado do Nobel.

Merecer o prêmio e não ser lembrado faz da Academia Sueca uma distribuidora de poder cultural às avessas. Nada falta à sua glória, alimentada anualmente por uma guerra de polêmicas, em virtude de seus critérios subjetivos e eurocêntricos. O que ajuda a explicar o ataque que o então secretário permanente do júri do Nobel, Horace Engdall, fez certa vez à literatura americana: “Os escritores dos Estados Unidos são demasiado sensíveis aos modismos de sua cultura de massas (…) isolada e insular, os EUA traduzem pouco e não participam realmente do grande diálogo da literatura. Essa ignorância os limita”. Sincronicamente à grosseria, o atormentado romancista francês JMG Le Clézio derrotou os consagrados Philip Hoth, Don DeLillo e John Updike (morto em 2009) e levou o Nobel de 2008.

A premiação de grandes injustiças faz, às vezes, o prêmio ignóbil. Por exemplo, a do neurologista Antonio Egas Moniz, Nobel de Medicina de 1949. A psicocirurgia que criou, a lobotomia, a mais bárbara manipulação do cérebro humano, serve até hoje ao preconceito social e clínico de calar as mentes inquietas.

O silêncio das ausências incômodas é escolha irreversível. Sabemos que talento, disciplina, grandeza, inovação, fundamentos morais ajudam a explicar inúmeras premiações. E assim não explicam, na literatura, a ausência de Leon Tolstoi, Franz Kafka,Marcel Proust, Jorge Luis Borges, James Joyce, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Paul Valéry, Grahan Greene, Virginia Woolf, Carlos Drummond de Andrade, esquecidos pelo júri de Estocolmo.

Certo é que nem todos precisam do Nobel para serem respeitados ou conhecidos. O Nobel é que não respeita seu fundador quando não se reconhece nos melhores.

Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *