De pouco adianta ganhar em distinção reforçando particularidades se o resultado é perder a vocação humana para fugir da solidão e viver em coletividade. Pessoas, coisas e países bizarros são apenas variações de nós mesmos, não devemos nos enganar.
Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 8 de abril de 2012.
É difícil saber com certeza a seriedade, licitude ou encanto de um mundo desconhecido. A Páscoa tem sua origem entre os hebreus, se transformou em uma das duas maiores festas cristãs, relembra libertação e ressurgimento. Passagem de uma estação à outra, transição permanente da vida, é celebração e fertilidade. Data otimista, repudia enganos e frustrações e nos convida a reconstruir e aceitar diferentes sistemas de pensamento.
A descontinuidade e o desengajamento em relação às responsabilidades individuais, sociais e ambientais mudam de país para país, mas é inegável que a maioria do mundo busca desbloquear as causas e fatores da infelicidade humana. E vivem melhor os povos que sabem moderar e equilibrar simpatia e antipatia pelas pessoas e coisas, sem ousar rotular ninguém definitivamente. Agindo assim é possível pensar que a personalidade quente do fogo se equilibra diante da simpatia refrescante da água. Como no “D. Quixote”, onde Cervantes embaralha similitudes e analogias para descrever sua busca pela representação dos sonhos e desejos da humanidade.
No prefácio de seu livro “As palavras e as coisas”, Michel Foucault avisa de onde tirou a inspiração para desenterrar a história das ciências humanas, as leis e limitações de suas regras, conceitos e valores. Viu como em todos os tempos são trágicas as consequências da fúria da competição e do combate de ideias e pessoas. Mas sua motivação inicial foi bem humorada. Apaixonou-se pelo encanto exótico de um sistema de pensamento livre e mágico que leu no “Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos”, citado em um conto de Jorge Luiz Borges. Ali, o genial argentino, descrevendo a limitação dos sistemas numéricos, analíticos e de classificação, esbarra nas ambiguidades, redundâncias e deficiências atribuídas a certa enciclopédia chinesa: “Em suas remotas páginas consta que os animais se dividem em a) pertencentes ao Imperador; b) embalsamados; c) amestrados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães soltos; h) incluídos nesta classificação; i) que se agitam como loucos; j) inumeráveis; k) desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo; l) etecetera; m) que acabam de quebrar o vaso; n) que de longe parecem moscas.” E é o mesmo Borges que conclui: registrei tais arbitrariedades porque “notoriamente, não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo”.
Não somente nas fábulas e histórias infantis são infinitas as formas de ordenar e descrever as coisas. Por isso quem se dispõe a construir códigos para buscar classificar e entender o mundo precisa ir devagar com a presunção, valendo-se do freio da humildade e da sabedoria.
As considerações econômicas andam tão absolutas em todos os países que subjugaram amplamente as relações afetivas e a discussão do que é realmente importante para a vida. O sobreviver precário e preocupante ocupou todos os lugares e pode fazer desaparecer os vestígios de responsabilidade comum, pela sorte uns dos outros. A imperturbável distancia da solidariedade ou da gentileza é consequência da falta de amor pelo próximo, da crescente indiferença pelo trabalho de servir a quem precisa e da impaciência em ver como fardo desagradável o valor das leis sociais para os mais desprotegidos.
São tantas e diversas as bandeiras e os hinos dos países (uns lembram a guerra, outros celebram a paz) como são únicas as impressões digitais. Mas os critérios para dividir e separar pessoas não são as diferenças visíveis, as características pronunciáveis. Virtude e desonestidade, refinamento e barbárie não bastam para garantir a fixação da identidade pessoal ou nacional. O que de fato distingue duas pessoas é que cada uma é o que é e a outra igualmente o é à sua própria maneira.
Estabelecer relações semelhantes é mais importante para o bem viver do que fixar-se em coisas semelhantes. Sendo que, por mais que às vezes busquemos esquecer isso, a amplitude de similaridades é completamente dominante sobre as pontuais diferenças. Somos todos tão absurdamente parecidos que passamos a sobrevalorizar as diferenças que nos distinguem e não nos damos conta do custo que é parecer “únicos”: um processo de escolha feito por pessoas e países cuja motivação tanto pode ser para bem quanto para mal.
De pouco adianta ganhar em distinção reforçando particularidades se o resultado é perder a vocação humana para fugir da solidão e viver em coletividade. Pessoas, coisas e países bizarros são apenas variações de nós mesmos, não devemos nos enganar.
*****
PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. This category only includes cookies that ensures basic functionalities and security features of the website. These cookies do not store any personal information.
Any cookies that may not be particularly necessary for the website to function and is used specifically to collect user personal data via analytics, ads, other embedded contents are termed as non-necessary cookies. It is mandatory to procure user consent prior to running these cookies on your website.