Memórias da última batalha ideológica

REVISTA ÉPOCA – 10/09/2008

Promulgada um ano antes da queda do Muro de Berlim, a Constituição é fruto de um tempo em que as diferenças entre esquerda e direita ainda eram claras

Ricardo Amaral

APOTEOSE

O deputado Ulysses Guimarães exibe a Constituição durante discurso no dia da promulgação, no Congresso. “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, disse

Vinte anos depois, é fácil dizer que a Constituição de 1988 é uma das mais desnecessariamente longas do mundo, uma fonte de ilusões e expectativas frustradas – com seus direitos inaplicáveis na vida real e dezenas de artigos aguardando regulamentação –, um estorvo para os investidores sérios e um paraíso para os advogados espertos. Tão imperfeita que seu texto original de 245 artigos e 70 disposições transitórias já sofreu 62 emendas de lá para cá – e ainda está devendo atualizações. Ela nem estava pronta ainda quando foi acusada, pelo então presidente, José Sarney, de tornar o Brasil ingovernável. Mas foi basicamente com o texto produzido sob o comando do deputado Ulysses Guimarães que o país superou crises políticas, institucionais e econômicas para chegar ao século XXI na situação de democracia sólida, combinando direitos sociais relativamente amplos a uma vigorosa economia de mercado. Vinte anos depois, difícil é imaginar como um país semi-autárquico, de economia fechada, mergulhado na inflação e na desigualdade, recém-saído de uma longa ditadura militar, foi capaz de escrever seu futuro numa Constituição democrática.

Quem viveu aquele período testemunhou ou participou da última grande batalha entre os dois pólos que dividiam o Brasil e o mundo antes da queda do Muro de Berlim. Era um tempo em que as palavras direita e esquerda faziam todo o sentido, não apenas nos livros, mas nas ruas. A disputa ideológica ganhava expressões de carne e osso no Congresso – um Congresso que nunca mais seria o mesmo, nem como representação política da sociedade nem como centro de qualidade dos debates nacionais. Os melhores políticos e alguns dos maiores intelectuais e líderes de classe do país estavam lá: Ulysses, Mário Covas, Jarbas Passarinho, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Roberto Campos, José Richa, Delfim Netto, Florestan Fernandes, Guilherme Afif Domingos, os jovens Nelson Jobim, Luís Eduardo Magalhães, Sigmaringa Seixas e Paulo Delgado, os experientes Virgílio Távora, Affonso Arinos, Bocayúva Cunha, Nelson Carneiro e Konder Reis; as feras do Centrão – Ricardo Fiúza, Amaral Netto, José Lourenço, Gastone Righi; e os ícones da esquerda – Cristina Tavares, José Serra, Roberto Freire e Vladimir Palmeira.

A divisão ideológica fazia sentido não só nos livros, mas nas ruas e nas disputas em carne e osso

Se você tinha menos de 18 anos em 1986, não votou para eleger os constituintes nem poderá contar aos netos o que é uma verdadeira batalha regimental no Parlamento. Porque a Assembléia Nacional Constituinte (ANC) foi isso do primeiro ao último dia: uma batalha em torno de cada palavra, vírgula ou ponto-e-vírgula, em que a vitória dependia do número de votos e do controle sobre o regimento interno. Disputava-se tudo, até a invocação do nome de Deus no início dos trabalhos, contestada em vão pelo petista José Genoino. Brigou-se inutilmente também pela restrição ao fumo (naquele tempo, um direito inalienável) no plenário da Câmara, onde se reuniam para votar os 559 deputados e senadores constituintes – e onde não havia assentos suficientes para mais de 400.

A esquerda tomou vantagem no começo dos trabalhos, por um lance de audácia do estreante deputado Nelson Jobim, do PMDB gaúcho. O jovem advogado pediu uma audiência para apresentar-se como soldado raso ao comandante Ulysses Guimarães, tripresidente do maior partido político, da Câmara dos Deputados e da própria Assembléia – que também assumia a Presidência da República, nas ausências de Sarney. Em dez minutos de conversa, Jobim apresentou a Ulysses um esboço de regimento interno para a Constituinte. O comandante sabia da importância estratégica do regimento, mas ainda não tinha um texto para trabalhar. Enquanto folheava o esboço, Ulysses deu uma ordem a Osvaldo Manicardi, seu secretário particular: “Ô, doutor Osvaldo, arranje um lugar para o moço deputado aqui, porque ele vai trabalhar comigo”.

O relator já designado para o regimento interno era o senador Fernando Henrique, do PMDB de São Paulo, que rapidamente se acertou com o “especialista” Jobim. Os dois combinaram a divisão da Constituinte em 24 subcomissões, que depois se fundiriam em oito comissões temáticas, até chegar ao crivo de uma Comissão de Sistematização. Esta seria entregue a um “conservador” do PMDB, o deputado do Amazonas Bernardo Cabral, com pouca margem para alterar os direitos que a esquerda trabalharia para incluir nas comissões em que fosse majoritária. Para arrematar, combinaram de começar as votações pelos direitos e garantias fundamentais, normalmente dispostos no final das Constituições. Os direitos sociais e coletivos passariam a “amarrar” o texto em favor daquele que era conhecido como “campo democrático e popular”.

O regimento interno foi votado em fevereiro de 1987. A esquerda conseguiu aprovar, nas etapas iniciais, uma coleção de direitos trabalhistas e sociais – os mais importantes, talvez, foram a universalização da seguridade social e a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). As bancadas mais à esquerda, entre os 12 partidos representados na Constituinte, eram apoiadas por um vigoroso movimento sindical, pelo nascente MST, por organizações ligadas à Igreja e à sociedade civil, que ainda repercutiam as gigantescas manifestações pelas Diretas, em 1984, e pela eleição de Tancredo Neves, logo depois.

Era um tempo em que o bom discurso ainda era capaz de virar o vento no plenário – algo cada vez mais raro. Na Constituinte, o próprio Ulysses se surpreenderia com isso na manhã em que o deputado Alceni Guerra (PFL-PR) apresentou a proposta da licença-paternidade. Ulysses tratou a idéia com desdém, chamou-a de “uma homenagem ao pai gestante” e comparou-a a uma piada do humorista Chico Anysio. Alceni falou menos de dez minutos. Usou argumentos de médico-pediatra para explicar o papel do pai nos momentos próximos ao parto e recordou, emocionado, sua própria e recente experiência – havia apenas dois meses, a mulher do deputado, Ângela, correra risco de morte no parto da quarta filha, e Alceni tivera de ser pai e mãe por alguns dias. O vento virou. Ulysses pediu desculpas pela grosseria. Amiga do casal de filósofos franceses Jean Paul-Sartre e Simone de Beauvoir, a deputada Cristina Tavares (PMDB-PE) deu a chancela das feministas à proposta. A direita aderiu e, de lá para cá, os pais brasileiros têm direito a passar três dias ao lado dos filhos recém-nascidos.

O passeio da esquerda acabaria em janeiro de 1988, quando estava em debate a reforma agrária. O texto da comissão previa que terras produtivas poderiam ser desapropriadas se não cumprissem uma “função social”. Foi o estopim para a formação do Centro Democrático, o Centrão suprapartidário que subtraiu de Mário Covas a liderança do PMDB na prática e, portanto, o controle do plenário. Organizado por 16 líderes, o Centrão conseguiu aprovar uma emenda do deputado Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP) alterando o regimento interno da Constituinte. Com 317 votos, o Centrão assumiu o comando das votações e limou boa parte do que a esquerda pensava ter garantido.

ARBÍTRIO

O general Newton Cruz durante as medidas de emergência em Brasília, em 1984. A memória da ditadura militar ainda era recente

O Centrão tinha aliados no campo – a recém-criada UDR, do fazendeiro Ronaldo Caiado – e no empresariado. Num discurso contra a mudança de regimento, o deputado Lula, então líder do PT, disse que empresários haviam despejado US$ 35 milhões para comprar votos na Constituinte – pouco mais da metade do que viria a ser conhecido, anos depois, como valerioduto. Com os votos do Centrão, Sarney conseguiu um mandato de cinco anos, um a mais que o desejado por Ulysses, e o sistema presidencialista foi mantido, apesar do sotaque parlamentarista do capítulo sobre os poderes da República. Ulysses e seus generais trataram de adaptar a Constituição, por vezes a golpes de texto. O artigo do deputado Fernando Gasparian (PMDB-SP), fixando juros em 12% ao ano, foi incorporado ao artigo sobre o Sistema Financeiro Nacional e, na prática, congelado. Com a vitória do presidencialismo, a medida provisória, típica do parlamentarismo, foi adaptada em instrumento do Executivo para casos “urgentes e relevantes”. Era um tempo em que, apesar de tudo, os acordos eram possíveis.

A Constituição foi o resultado dessa disputa ideológica em dois tempos distintos. Por essa razão, ela ainda parece um tanto esquizofrênica. Seu motor mais possante foi a reconstrução do estado de direito democrático. Era recente a memória da censura, do arbítrio e do general Newton Cruz sitiando Brasília com medidas de emergência na votação das Diretas. “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, disse Ulysses ao promulgar o texto no dia 5 de outubro de 1988. Além de restabelecer o habeas corpus e ampliar as garantias individuais, o ânimo democrático da Constituinte levou a exageros, como a emancipação de territórios até hoje dependentes da União, e a verdadeiros desafios civilizatórios. Nenhum país tem Constituição mais avançada que o Brasil nos temas de meio ambiente e direitos dos indígenas, do consumidor e das crianças. São direitos difíceis de impor ainda hoje. Símbolo do trabalho que comandou, Ulysses Guimarães dizia que sua Constituição cidadã teria “cheiro de amanhã, e não de mofo”. O comandante desafiava os críticos da nova Constituição: “O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo”. Esse e outros discursos e debates memoráveis da Assembléia Nacional Constituinte podem ser lidos e ouvidos em um portal da Câmara dos Deputados. Vinte anos depois, eles nos ajudam a compreender a Constituição e o país que ela governa.

O repórter especial Ricardo Amaral cobriu as atividades da Assembléia Nacional Constituinte para o Jornal do Brasil e a Folha de S.Paulo, em 1987 e 1988

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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