Nas águas do Nilo

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 23 de dezembro de 2012.

Não se nada duas vezes na mesma água de um rio. É possível ler, pelo menos de duas maneiras, essa formulação do filósofo Heráclito sobre as mudanças inevitáveis da vida: primeiro, como o princípio de que tudo vem e vai pelo conflito natural do mundo; segundo, como um alerta para quem pretenda se arriscar em correntezas onde habitem crocodilos. A política do Egito chegará vazia ao próximo ano, impossibilitada de mover as mãos em direção à mudança, por insistir na estagnação por trás do grande alvoroço. Já a sabedoria do Nilo segue seu silencioso desespero, vendo pouco mudar às suas margens.

O otimismo com as rebeliões políticas que culminaram com a queda de 60 anos da ditadura militar e levaram, através de eleições livres e diretas, um governo civil ao poder, chega ao fim sem mudar o horizonte autoritário do país. Todos os departamentos de Oriente Médio de todas as universidades do mundo estão produzindo teoria sobre o ininteligível: se é melhor ter raiva do que ter razão; se é preferível estar submetido a ditadores militares ou a ditaduras religiosas; se ao invés de verdadeiro é mais adequado ser autêntico; se vale a pena viver sob uma sequência interminável de futilidades políticas ou morrer por conta delas. Nenhum grupo tem força para oferecer à sociedade algum valor prático, pois nada é popular em todos os círculos e por mais que se ande pelo país nunca se chega a lugar nenhum.

A grande novidade – a despeito da situação demográfica de um país de 80 milhões de habitantes, admirado no estrangeiro pela espetacular história dos feitos de seu povo e que poderia ser o mais procurado destino turístico do mundo – é continuar a manipulação, pelas armas ou pela fé, do governo vitorioso e de crise da Irmandade Muçulmana. Embora tenha recebido o mandato das eleições, dizendo-se contra a ditadura, tudo o que patrocina, em suas propostas e ações, está baseado em um reformismo que mais exclui do que incorpora os sempre perseguidos da nação.

Dentre inúmeras e criativas normas constitucionais reguladoras da liberdade, há as que dão amplos poderes à lei islâmica (sharia) como fonte interpretativa de atitudes e comportamentos. A mais ousada confere a um conselho de especialistas e catedráticos da Universidade Al-Azhar, centro mundial do islamismo sunita, o poder e a autoridade para interpretar a Constituição. O governo novo, navegando em contradições propositais, quer, na prática, abolir o Judiciário, domesticar o Parlamento e mergulhar o país na velha teocracia.

Curioso lembrar que um ano antes de a Primavera Árabe ter início, a Universidade Al-Azhar organizou junto com a Universidade do Cairo a cerimônia onde o então recém-empossado presidente Obama fez o seu famoso discurso de reconciliação com o mundo islâmico. Intitulado “Um novo começo”, o discurso de Obama exaltou a importância da instituição lembrando que a Al-Azhar era um dos principais centros da cultura árabe, “que carregou a luz do aprendizado através dos séculos, pavimentando o caminho para a Renascença europeia e o Iluminismo”. Quando veio a revolta, muitos esperavam que a queda de ditaduras desse espaço para um renascimento da liberdade e do vanguardismo árabe. Mas a primavera mais um vez tornou-se sombrio inverno e a Al-Azhar pode, hoje, se tornar o centro da instrumentalização da lei para a intolerância religiosa. Ou seja, a instituição que deu as chaves da modernidade ao Ocidente foi escolhida politicamente para obscurecer sua própria sociedade.

Na era dourada do islamismo, o Egito servia para o califado trigo e linho que cresciam ao longo do Nilo, além do ouro de seus desertos. Hoje em dia o que o país serve para o conjunto do mundo islâmico são principalmente ideias contraditórias. Assentados sobre um poder político real que vem das características geográficas do país em relação a seus vizinhos, os pensamentos das mesquitas, universidades, bem como das ruas do Cairo, Alexandria e demais cidades do país ecoam naturalmente muito além de suas fronteiras. De maneira bastante aguda, as opiniões, as interpretações e o caminho trilhado pelo povo egípcio e os grupos de poder instituídos por lá influenciam sobremaneira os acontecimentos nos países vizinhos. Por isso foi recebida com amplo contentamento a mediação egípcia que mês passado ajudou a acalmar as tensões entre o Hamas e Israel. Hillary Clinton, que se deslocou até a região, saudou os esforços do Egito visto como “pedra angular para a estabilidade regional e a paz”.

Difícil saber por que países espetaculares decidem ser nações remotas. A história atual do Egito, recentemente sagrado com períodos de grande desenvolvimento, e, no passado, pilar da humanidade, é um alerta para os desatentos à velocidade das coisas.  

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PAULO DELGADO é sociólogo.

 

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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