Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 19 de Outubro de 2014.
Os suecos, tranquilos em sua segura felicidade, gostam mesmo é da França. No período em que a economia francesa está pior que apática, com gestão duramente questionada, afundando mais um pouco a moral do país, em Estocolmo, uma dobradinha francesa de prêmios Nobel, em Literatura e Economia, salvou a pátria de Asterix. Com o gosto apurado pela influência de sua cultura, ciência e política no cenário global, no mínimo cafés e bistrôs vão se animar um pouco mais. Falando bem e, é lógico, mal, dos ganhadores. Mas contentes que sejamos nós, disse um orgulhoso presidente Hollande sobre o economista agraciado Jean Tirole, apesar tê-lo como um crítico da timidez das reformas do seu pífio governo. “Tanto pior para as sirenes do declínio e os amantes do denigrir nacional”, ufana-se em editorial o normalmente sóbrio jornal Le Monde.
O poder midiático do Nobel é um fenômeno. Patrick Modiano, o novo Nobel de literatura, tem tiragens iniciais de cem mil exemplares na França, mas é pouco conhecido e ainda muito menos lido fora dali. No Brasil, cujo poder não pressupõe cultura, seria somente encontrado em sebos, não fosse o badalado desenhista Jean-Jacques Sempé, que ilustra um livro infantil de Modiano – de uma série dedicada aqui à obra do ilustrador. Mas é claro que não tardará a voltarem a publicá-lo, agora com a tarja Nobel, a melhor marca dos povos nórdicos.
Os nórdicos também usam a arma midiática que têm para tomar lado em questões que são menos restritas ao mundo dos cafés e corredores universitários, onde outrora intelectuais discutiam suas visões de mundo sem estarem subjugados aos interesses da política. Foi o que voltaram a fazer com o Prêmio Nobel da Paz anunciado em Oslo. Dividiram o premio entre vizinhos e gerações consagrando os trabalhos e percursos do indiano Satyarthi e da jovem paquistanesa Malala Yousafzai e assim puseram o dedo numa das feridas alheias que mais injuriam o ocidente. Nas palavras do comitê, “uma batalha da educação contra o extremismo” é o que simboliza o prêmio dividido por duas pessoas de religiões e países que se veem em constante estado de antagonismo.
O Nobel é um imã de convergência às práticas que se querem universais. Uma repulsa ao trabalho infantil e um viva ao direito irrestrito à educação fazem dessa uma edição das menos contraditórias do prêmio. Menos nos países tortos do mundo. Pois como é muito comum entre autoritários ou subdesenvolvidos, santo de casa bom é santo morto. Quando um Nobel como esse é recebido com um sorriso amarelo em alguns países a notícia consagra a ideia de que nenhum governo gosta de ter o dedo acusador apontado para si, muito menos para celebrar seus heróis não oficiais.
Mas vale lembrar que o Nobel não consegue ver tudo que parece gostar. Às vezes, suas edições estão contaminadas pelos murmúrios inconcebíveis da má politica. Afinal, não há prêmio Nobel da Paz de 1948, pois o comitê que o concede, tão rápido em homenagear dissidentes em todo o mundo, preservou-se da ira britânica e fingiu não entender o princípio da não violência de Mahatma Gandhi, idealizador do Estado indiano e maior símbolo da paz do século 20. Quando se deram conta da lerdeza em compreender sua luta, o líder da independência já estava assassinado em Nova Délhi.
A adolescente Malala, por sua vez, escapou do assassinato e do anonimato e recebeu o prêmio para coroar a já estabelecida aura de símbolo contra as investidas talibãs. Enquanto Satyarthi, crítico prático da violência das castas sobre as crianças, é controverso, mas bem quisto pela maioria, pelas cicatrizes que carrega em seu corpo. Apesar dos atributos da liberdade serem muitas vezes alegoria em seus países, ambos foram saudados efusivamente pelas autoridades .
A simbologia do Nobel da Paz de 2014 é em parte contra fundamentalismos que aterrorizam a vida dentro de várias sociedades do mundo e a favor da paz que nunca se estabiliza na Ásia Meridional, de Índia e Paquistão.
Inesquecível a história deste premio. “O mercador da morte está morto.” Quando Alfred Nobel sentiu o privilégio que foi ler em vida a notícia da própria morte, não gostou de saber como andava sua reputação. O químico sueco, que fez sua fortuna ao inventar a dinamite, leu seu obituário num jornal francês que o confundiu com seu irmão, morto em Cannes dois dias antes. Disposto a não ser lembrado pelo mal que sua invenção fez à humanidade, colocou sua riqueza a serviço da mais poderosa filantropia humanitária em forma de prêmios que temos no mundo.
Nada sabe verdadeiramente da riqueza aquele que a deseja inteira para si. Com mais de um século de existência, o Nobel continua marcado por saudáveis desencontros e polêmicas mas sendo um belo exemplo de afortunado homem que soube colocar no elogio aos outros sua paixão.
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PAULO DELGADO é sociólogo.
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