Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 11 de Agosto de 2013.
Uma águia de duas cabeças é a figura principal do brasão de armas da Rússia. O símbolo representa o país com uma cabeça para o Oriente e outra para o Ocidente e foi reabilitado no início dos anos 1990 diretamente do escudo de feições medievais que representava o antigo Império. O vasto território do país é um dos maiores orgulhos nacionais, contrapondo-se cada vez mais a uma população que vem diminuindo drasticamente. Ser ao mesmo tempo europeu e asiático: se por um lado é esta a essência da noção de grandiosidade que o país sempre carregou, por outro é fator de constante dificuldade para definir alguma forma mais consistente de relação regional harmônica e proveitosa com seus vizinhos fortes – como a União Europeia, a China e o Japão. Grande demais para se integrar à Europa, europeia demais para fazer-se Ásia.
A Rússia é a sua própria região, com cada vez mais problemas para encontrar uma equação que possibilite a manutenção da cultura nacional, e de suas várias minorias tradicionais, ao mesmo tempo em que consiga controlar a escalada da xenofobia e abra caminhos para a criação de instituições mais plurais. Porque, na Rússia, o maior problema não é étnico, nem mesmo econômico, mas a baixa qualidade do sistema governamental e do aparato político do país.
Em tempos de preponderância das razões econômicas e preocupações geopolíticas, talvez o grande trunfo de Moscou seja fazer a ligação da União Europeia ao leste asiático – e especialmente à China – por terra. O que falta é a confiança de que Moscou possa agir com previsibilidade e pragmatismo. Antes disso, pelo menos, já começou a aprimorar a infraestrutura que pode tornar esse caminho interessante. Em um passo a Rússia decidiu reformar seu caminho de ferro transiberiano. O anúncio feito em junho pelo presidente Vladimir Putin, no Fórum Econômico de São Petersburgo, assegura que, na busca pela aproximação do dinamismo asiático e distanciamento da dependência do mercado europeu, será possível ir com conforto e segurança, por nove mil quilômetros, da Rússia europeia à Rússia asiática. Difícil saga. A Europa vê a economia russa cada vez mais como fonte de energia e confusão. Não é diferente na Ásia.
De qualquer forma, os dirigentes russos esperam que a rota não só passe a ser cada vez mais usada para transporte de cargas, mas também que ela possa reafirmar – e, preferencialmente, aumentar – a presença oriental do país dirigido de forma cada vez mais centralizada a partir de Moscou. Para o futuro, quem sabe, a integração de uma região com a outra através do vasto mar siberiano. Por enquanto, é mais um movimento que permite vender seus recursos naturais, principalmente hidrocarbonetos, para a China.
Na metade do século passado, Mao pegou o trem e foi de Pequim a Moscou atravessando toda a transiberiana para pagar tributo e pedir a benção de Stalin em um momento que a China precisava mostrar influência externa para consolidar seu poder doméstico. Hoje é o contrario. Na época, Stalin demorou dias para receber Mao, em um daqueles despropósitos simbólicos que ajudaram a dar forma e significado à política que os chineses não gostam de relembrar, nem de esquecer. No presente, ambos os países fazem o possível para lustrar a imagem de sua parceria estratégica e assim arrancar concessões dos EUA.
São muitos os países que passarão maus bocados por conta de fragilidades demográficas, mas a Rússia é um dos que mais penarão porque demonstra enorme dificuldade para encontrar boas formas de atenuar o enxugamento populacional. Em toda região a leste da Sibéria a densidade demográfica está chegando a uma pessoa por quilômetro quadrado, porque a despeito de todo o sucesso das economias vizinhas do leste asiático, o leste russo é a região que tem visto sua população diminuir com mais força nos últimos anos.
A dificuldade de integração das cidades russas com a engrenagem de forte crescimento do leste asiático é desalentadora. Ainda que a milhares de quilômetros de distância, a costa Pacífica americana tem laços mais fortes e dinâmicos com a Ásia do que a região russa (que chega a ficar a menos de 800 quilômetros de distância de importantes cidades na China, na Coréia do Sul, ou no Japão).
O fator climático explica parte da dificuldade de povoamento da área. Mas o problema é sobretudo a fragilidade demográfica. Um dos maiores temores russos é a ocupação chinesa, cada vez mais intensa, e disposta a desbravar a região rica em recursos naturais. Inclusive porque as duas províncias chinesas que fazem fronteira com a região de Vladivostok, a maior cidade russa na costa Pacífica, que não chega aos 600 mil habitantes, são Heilongjiang e Jilin, que juntas têm em torno de 68 milhões de habitantes.
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PAULO DELGADO
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