Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 12 de Maio de 2013.
“O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas de forma diferente por lá”, ressalta O Mensageiro, livro do britânico L. P. Hartley, cuja frase célebre sobreviveu à obra já esquecida. De fato, pessoas como países, não se reconhecem em muitos de seus hábitos e costumes do passado. Mas de tempos em tempos o passado é invocado para defesa, ou acusação.
Semana passada, insatisfações e temores relacionados ao crescimento da China, transbordados para além de questões comerciais – recaindo especialmente sobre as formas como se dá esse crescimento – foram expressas um tom acima, nos Estados Unidos. Com inédita declaração oficial, o Pentágono acusa o governo chinês de ser o mandante de massivas operações de espionagem cibernética contra empresas e o próprio governo americano. Esse terreno é bem mais tenso do que desavenças cambiais, já que o alvo das acusações é o Exército chinês. A reação chinesa foi uníssona e enfática ao dizer que os EUA estariam invocando “um pensamento de Guerra-Fria e uma mentalidade de jogo de soma zero”.
Todo o mundo sabe que a China, como os Estados Unidos, tem na espionagem uma arma central de suas estratégias de defesa, projeção de poder e – por que não? – desenvolvimento. Pois, basta apenas um passo, para a tecnologia de defesa converter-se em interesses industriais e econômicos. A novidade é os EUA chancelarem oficialmente, e de forma pública, essas acusações; quando a praxe é respondê-las com contraespionagem….e mais espionagem.
O fato é que o clima de transição de poder na China, desde a chegada da nova geração ao topo da hierarquia política, tem levado países estrangeiros a testar essa nova liderança. Mandar torpedos que possam tangenciar os movimentos internos e interpretar os sinais que vêm de lá. Nesse jogo para discernir a face da nova administração, o imaginário do passado é usado, dentro e fora do país, para mostrar o que uns e outros consideram bons ou maus exemplos.
Os povos de língua inglesa comportam-se como um sistema de poder. Na mesma semana, a Economist, influente revista britânica, voltou mais de duzentos anos no tempo para apontar traços de uma China indesejável. A montagem de sua capa traz o atual presidente, Xi Jinping, vestido jocosamente com a roupa característica de Qianlong, o imperador do país no fim do século XVIII. Nessa época os chineses não aceitavam embaixadores de outros países, nem mantinham representações no exterior. Quando os britânicos solicitaram em 1793 à dinastia Qing, a última dinastia do Império chinês, para enviar um representante permanente à Corte Celestial, a famosa resposta dada pela corte de Qianlong foi de que tal embaixada “não estaria em harmonia com o sistema da dinastia” e “definitivamente não seria permitida”. A dinastia Qing só aceitava a presença constante de bárbaros – assim como os romanos, essa era a designação geral para todos os povos não chineses – nas fronteiras do Império, não na capital. Os poucos estrangeiros admitidos regularmente na corte eram “obrigados a usar roupas chinesas”, “a não manter correspondência” e “jamais seriam autorizados a retornar a seus países”, como explicou o imperador chinês em carta ao rei inglês. Foi nessa época que a fama de Cantão correu o mundo, pois era naquele cantão, hoje Guangzhou, que ocidentais podiam comercializar com os chineses e manter representação permanente. Décadas mais tarde todo esse sistema ruiu com as Guerras do Ópio vencidas pelo Reino Unido: após as quais a China foi basicamente forçada a manter relações diplomáticas (e comerciais mais amplas) com os países ocidentais, os quais até então eram mal distinguidos um do outro. A evocação a 1793, por uma revista inglesa, traz consigo o que se desenrolou a partir daquele momento: a demonstração máxima de arrogante autossuficiência por parte dos chineses, e falta de bom senso e atenção a um mundo que via a Inglaterra começar sua Revolução Industrial. O almirante Macartney, chefe da delegação britânica, chegou a Pequim com 600 presentes que mostravam a engenhosidade inglesa ciosa de seduzir a corte, e saiu de lá com a resposta de que os chineses “não precisavam das suas manufaturas”.
Passados dois séculos os chineses são acusados de querer dominar manufaturas e outras tecnologias do mundo, valendo-se, inclusive, de espionagem. Entre um momento e outro o caminho foi longo. Mas ao modo chinês o governo encontrou uma forma mais aprazível de responder aos desconfiados: preparou uma grande recepção para o neto de Richard Nixon que visita o país à frente de ávida delegação. Relembra seu avô que, em memorável viagem em 1972, apertou a mão de Mao e fez da China parceira preferencial dos EUA.
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PAULO DELGADO
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