“O PT chamou o urso para dançar”

“O PT chamou o urso para dançar”

Valor Econômico – sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016.

Entrevista concedida a Rosângela Bittar.

Crítico do PT e do jeito improvisado de atuar do ex-presidente Lula desde quando o partido nem sequer sonhava chegar ao poder e mandar no Brasil, o ex-deputado Paulo Delgado, eleito pelo PT para seis mandatos federais, mas fora do Parlamento há cinco anos, dedica-se à sociologia, à consultoria política e à atuação no CIEE, a instituição que promove integração escola-empresa. Mas, as revelações da Operação Lava-Jato e a destruição da Petrobras, além do andamento do governo Dilma, revigoraram seu desencanto. Está diante do risco de ver o fim de uma de suas principais obras no Legislativo, a Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001, que propõe nova política no tratamento das doenças mentais, pela qual lutou por 12 anos. O Ministério da Saúde trocou a orientação do setor, instalando na direção de sua ação um dos principais defensores de dirigentes de manicômio, exatamente um caminho que o sociólogo combateu na sua cruzada parlamentar. O fato atualizou sua visão crítica sobre os governos de seu partido, embora defenda que qualquer governo do Brasil, daqui para a frente, não poderá prescindir do PT e suas políticas sociais.

Valor: O senhor saiu do PT, se desligou?

Paulo Delgado: Não foi preciso. O PT é que saiu de mim.

Valor: Como é isso?

Delgado: Para quem viveu, nada apaga as primeiras impressões. Só quem se arriscou no início pode falar agora. As pessoas ajudavam o PT por acreditar naquilo. Todas as pessoas de bem em algum momento tiveram simpatia pelo PT ou por pelo menos um petista. Lula era odiado pelos que agora o apoiam. Quem o fez amado foram os petistas de todas as classes. Ser petista dividia famílias.

Valor: Os governos do PT têm destruído até mesmo avanços dos governos do PT. Na sua obra parlamentar, a legislação sobre doença mental e manicômio, hoje em recuo, foi a mais relevante?

Delgado: Como a que produziu novo modelo de tratamento e nova política pública, sim. Ela fez o tratamento do doente mental migrar do isolamento, da internação e da interdição para o tratamento aberto, ambulatorial e preventivo nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

Valor: Foi difícil a aprovação?

Delgado: A lei levou 12 anos para ser aprovada. Havia em torno de 160 mil brasileiros que internavam e reinternavam permanentemente em cerca de 90 mil leitos em hospícios. Só havia mil leitos em hospital-geral e quase nenhum atendimento em serviço ambulatorial. O modelo antigo era um cronicário com o hospital como destino de depósito. Piorava o paciente. Esse diagnóstico é que deu origem à reforma psiquiátrica.

Valor: Isso atingiu um lobby forte de manicômios, que na verdade impediu que a lei fosse aprovada durante 12 anos…

Delgado: Havia uma indústria da internação do paciente psiquiátrico. Quando chegava ao velho Inamps uma ordem de serviço carimbada como “urgente” é porque estava atrasado o pagamento aos hospitais psiquiátricos. Bastava o diretor bater “urgente” na nota e tinha que pagar o hospital psiquiátrico, porque o hospital mandava no Inamps. Em alguns Estados, as internações psiquiátricas eram feitas por indicação política. Havia também internação para resolver questões não psiquiátricas e não médicas, como conflitos familiares.

Valor: É uma lei ideológica, como argumentam os seus adversários?

Delgado: Claro que não. Mas quem acha que a reforma é ideológica não compreende a tramitação, a sanção e a regulamentação, que completam 15 anos da lei. A tramitação foi debatida na Câmara e no Senado durante anos. A sanção foi feita pelo presidente Fernando Henrique e a regulamentação, pelo presidente Lula. É uma lei que pertence aos pacientes, não é de um partido ou de corrente ideológica. Aliás, as internações por motivos não psiquiátricos eram usadas também nos regimes de esquerda. É o contrário das leis que existiam, por exemplo, na União Soviética, que usava a psiquiatria para internar dissidente. A medicina brasileira adora internar, mas o hospital fechado é instituição arcaica.

Valor: Por que essa transformação está em risco?

Delgado: Essa ideia de porteira fechada na distribuição de ministérios põe em risco os avanços brasileiros, em todas as áreas. Enquanto não acabar o conceito de porteira fechada, o eleitor não se sentirá melhor do que um boi.

Valor: O que é porteira fechada?

Delgado: Eu te dou um ministério e você faz dele o que quiser. Não tem a ver com governo de coalizão. É falta de autoridade e liderança. O avanço da medicina é o que permite o tratamento em liberdade. O Brasil não ganhará nada se tudo cair em pedaços por razões políticas. A ideia de que você pode identificar programas de governo com militância política existe em muitas áreas, mas na saúde mental ultrapassa essa compreensão. Essa lei é apoiada por todos os grandes partidos. É uma negligência total da presidente usar um momento político de erosão da base social do governo, por culpa dela, para ampliar a erosão introduzindo a mudança do modelo.

Valor: Houve a troca de comando do setor de doença mental (Valencius Wurch Duarte Filho foi nomeado coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde)…

Delgado: Diria que houve troca de ponto de vista, não foi só de pessoa. O novo titular tem outro ponto de observação sobre o sofrimento dos doentes mentais. Ele foi diretor-clínico do maior hospital psiquiátrico do Brasil, a Casa de Saúde Doutor Eiras, no Rio, fechada por impiedade com os doentes. Mas é credor da Dilma, a devedora de explicação é ela… Ele comanda a Coordenação Nacional de Saúde Mental. Ali quem achar que o médico está certo e o paciente, errado, não pode trabalhar. Na psiquiatria democrática, quem fica preso é o psiquiatra, paciente fica em liberdade. A psiquiatria precisa parar de querer encaixar um sintoma em todos. A lei não desconhece a doença mental nem é contra internação. Mas a doença mental não é doença contagiosa que exige isolamento. A lei é contra a internação como política comercial do Ministério da Saúde.

Valor: O senhor vê diferença entre o governo de Lula e o de Dilma?

Delgado: São semelhantes, se agarraram aos defeitos do Estado achando que tinham descoberto a pólvora. É impossível classificar os governos petistas como de direita ou de esquerda, porque a direita e a esquerda, no topo do poder, vivem uma dentro da outra. É uma simbiose em que a esquerda se alimenta da direita e a direita, da esquerda. Quem podia imaginar a mamata de empreiteiros num governo de esquerda? O que ocorreu no período petista é que usufruir do governo passou a ser me- lhor do que prosperar por si. O governo mirou o topo dos Três Poderes com a ambição de controlar e uniformizar tudo, achando que isso é ser de esquerda. Houve sindicalização da elite do Estado. Até o Itamaraty pediu filiação à CUT. O fisiologismo, o paternalismo e o clientelismo, que eram as três principais caracterís- ticas do Estado brasileiro getulista, avançaram e se universalizaram no período petista.

Valor: A intervenção do Estado em tudo é excessiva?

Delgado: O Estado brasileiro está subjugando a sociedade e aumentando o caráter fictício do cidadão. Ninguém mais tem visão geral das coisas ou aceita o ponto de vista do outro. O que parece direito é na verdade privilégio e tutela. Quando pensamos o PT, pensamos em autonomia do cidadão. A distribuição de poder pelo Estado sem que o cidadão participe da mobilização social pelo direito dá ao cidadão a ilusão de poder. Na verdade, o que você tem é o cidadão buscando aumentar sua dependência do Estado. É isso que entope o Judiciário de processo pessoal irrelevante. E é isso, pelo sono do PT em relação ao futuro do país, que provoca essa crise que não leva o governo a ter humildade e pedir ajuda.

Valor: Só piorou, com a consolidação do poder das corporações.

Delgado: Não se sabe ainda. Mas que está mudando o vigor da identidade pessoal do brasileiro, isso está. Uma característica desse período é que, se antes o Parlamento era reconhecido como o principal topo das elites do Estado democrático, hoje é formado por guetos de todo tipo. Isso se ampliou para os Três Poderes como um fim. O que visa o interesse de cada setor é enfiar a bandeira na sala, arrumar crachá, patrocínio, o que está em discussão é agarrar no governo para exercer o seu poder.

Valor: O senhor dizia que, se antes o Parlamento era a elite…

Delgado: Da representação da sociedade pluriclassista, mas, com a irrupção do dinheiro sujo nas campanhas, acabou-se com a ideia de eleger o melhor dos melhores. Hoje, quem ganha é o melhor dos piores. Uma das características do Parlamento é que você dificilmente con- segue enviar para o Parlamento um represen- tante muito melhor do que a prática daquele setor que ele representa. O sistema eleitoral não tem o poder mágico de mudar a qualidade de candidatos. Se a população reclama do sistema e da qualidade do Congresso, tem que reclamar dos partidos, que indicam os candidatos, do Tribunal Eleitoral, que os aprova, e dos cartórios, que lhes dão certidão negativa. Os três são responsáveis pela composição do Congresso.

Valor: No Executivo e no Judiciário as escolhas são melhores?

Delgado: Às vezes acho que é o Brasil que não processa bem a admiração por cidadãos exemplares. O que leva o governo a escolher para cada setor uma pessoa afinada com essa ou aquela ideia predeterminada. A Constituição é um baralho cujas cartas são misturadas segundo a ousadia e a ignorância de quem manda. E há a maldição da Esplanada: todo ministro da Dilma sai menor do que entrou. Outra maldição é o concurso público, que matou a jovialidade dos jovens e os adoece em busca de estabilidade e aposentadoria precoce. É uma fábrica de juízes, promotores e delegados de nariz em pé.

 

Foto Valor

 

Valor: Como vê o futuro do partido que viu nascer e pertencia a ele quando chegou à Presidência e tinha um dos líderes considerados mais carismáticos que o Brasil já teve?

Delgado: Tudo o que vira deus sem motivo acaba como doença. Primeiro o PT tem que parar de reclamar e começar a ter vergonha do que acontece. Essa crise não é dos petistas como um todo, uma crise dos bons propósitos que construíram o PT ou das ideias de boa sociedade e inclusão social que impulsionaram o PT de maneira rápida até chegar à Presidência. É uma crise da elite partidária, da oligarquia. Por isso, o processo do impeachment, se não levar isso em conta, não terá sucesso. É um erro de nação querer matar o PT fora da via eleitoral. Uma parte das ideias sociais do PT, essenciais para o Brasil ficar em pé, não foi esgotada pela crise política. O MDS [Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome] pilota a única moeda preservada do PT. Ali está o caroço do humanismo que deu a velocidade para chegar e no poder não soubemos entender como marca suficiente. O impeachment tem que levar em conta que é preciso preservar alguma coisa do PT. Especialmente porque, por temperamento, Dilma não sabe muito dos problemas do Brasil.

Valor: Como não sabe, se chegou à Presidência e lá está há cinco anos?

Delgado: Qualquer um ganharia a eleição com o apoio do Lula na época. O problema é que Lula nunca quis um petista melhor do que ele. Ela se ofereceu meio santarrona, obediente. Como se acha certa e honesta, acha que pode tratar todos com grosseria. Lula não percebeu que ela não tinha experiência nem acadêmica, nem na iniciativa privada, no partido, no sindicato, grêmio estudantil. Era uma ostra fechada em sua concha. Sem querer dar uma de analista, acho que a presidente Dilma, como escolheu o caminho militar para fazer o bem, começou a desprezar todos os outros, mais demorados. Está largando para lá Lula e petistas. Aprendeu a decidir com impaciência e foi esse traço autoritário da sua personalidade que Lula, com o autoritarismo oculto que pratica, confundiu com competência. Dilma é a última improvisação do governo Lula.

Valor: Improvisação ou caso pensado?

Delgado: Improvisação pura. Lula meio que não apoia nada, só usufrui do que dá certo. Lula entrou com medo de errar e mandou o [Antonio] Palocci estudar com os bambambãs. Os economistas que o PT passou a odiar foram professores do governo nos dois primeiros anos de Lula. O Brasil pegou o Lula no colo, todos torciam a favor. Mas Lula não se preocupou com os fundamentos das coisas. O negócio dele é saber se a goma arábica cola, quer resultado. Quando deu certo, esqueceu o aperto e passou a achar que era o gênio. O empresariado esperto pas- sou a dizer “vamolá! Agora vai!”, a elogiar sem parar — líder muito dependente de elogio, na maioria das vezes, quebra a cara —, e veio a afeição, a quebra do protocolo, tudo colocado na conta do homem popular que não estudou. Ele próprio cuidava de se depreciar e assim ganha- va simpatia, que confundiu com liberdade de ação. Sagaz, intuitivo, foi inventando programa de governo. E tome improvisação sem funda- mento econômico, sem base na realidade, sem historicidade. Deu no que deu. Só na bolsa de valores do Absurdistão é tão fácil destruir um sonho daquele tamanho. Formar um partido na baixa e o destruir na alta… O maior problema da política é que você não convida o urso para dançar. O PT convidou. E o urso comeu o PT.

Valor: Quem é o urso?

Delgado: Tem lobo também. Os construtores predadores, especialmente, com a visão atrasada da competição capitalista, são um urso. Por isso se dão tão bem com governos autoritários da África e dos nossos vizinhos. Não têm nada para dizer ao Brasil. Outro urso: a visão predadora da construção civil brasileira pressionando por obra, aditivo. O Brasil nunca vai ficar pronto. E o individualismo da concepção de transporte que a indústria automobilística, com seu lobby, impõe aos governos, sem exce- ção, impedindo o país de ter trem, metrô. Empurra carro e ônibus nas ruas para depois ver como fica. Sem falar da amizade dos bancos pela taxa de juros, o crédito consignado, o Banco Central domesticado. Vou parar aqui com a tragédia da Petrobras, uma dança com lobos.

Valor: Como sair desse enredo?

Delgado: Romper com o patrimonialismo de Estado, que é quem financia a orquestra e se enrola nela. Só mudando a ideia de que aumentar o poder do Estado sobre a sociedade e diminuir a autonomia do indivíduo é política progressista. A ideia de que você pode criar uma sociedade economicamente forte única e exclusivamente pelo acesso das pessoas a crédito e consumo. Confundiu renda familiar com classe social. É tal estatística que pode produzir a queda dos indicadores sociais do Brasil de uma hora para outra. Não é que estão caindo, é que não estão sustentavelmente altos.

Valor: A área do trabalho também era um ícone do PT. O que houve?

Delgado: O aumento da tutela sobre o emprego antigo encarcerou a inovação tecnológica e o risco compensador que é batalhar pela vida. Com isso cresceram os tribunais de defesa do emprego, a força da legislação protetora do emprego, e diminuíram os postos de trabalho. Ninguém melhor do que Lula poderia unir o capital e o trabalho. Ele perdeu a chance de estimular o novo emprego em torno de uma economia renovada e vital.

Valor: E a face da relação com as empresas?

Delgado: Deu status de política pública ao compadrismo empresarial. Começou a selecionar setores industriais para privilegiar. Com o crédito pessoal transformou o recurso público num afeto e não num indicador econômico. Era uma decisão afetiva do governo.

Valor: É cobrada eleitoralmente como afeto…

Delgado: Por isso a fúria na crítica na discussão do impeachment e da política em geral. Irracionalidade pós-afeto.

Valor: O impeachment se sustenta?

Delgado: Só a gestão da Graça Foster na Petrobras vale um impeachment. Mas ficando somente no que anda sendo discutido. São três vertentes do impeachment. Tem uma política, que é esse isolamento esplendoroso da Dilma. Tem uma econômica, que é a desmodernização da atividade econômica, com o fim do Plano Real. E tem uma vertente psicológica, cultural, que são as tendências do processo não se evaporarem com a sua transformação. As tendências desse processo de desencanto com o governo não se evaporam com o transcurso do processo. O momento pode permanecer ativo se não houver o impeachment. E a expectativa que ele oferece, se houver o impeachment, é desconhecida. Essa é a paralisia brasileira atual.

Valor: Isso significa que o impeachment vai piorar tudo?

Delgado: As possibilidades do impeachment são diferentes das circunstâncias do impeachment. Porque a sociedade está dividida naquelas três vertentes. Tem crises misturadas uma na outra. As três afogadas em improvisação e normas inúteis. A economia, a política e a cultura da sociedade. E com outra característica: as três vertentes ganharam um grau de urgência que ainda não é percebido por todos. Diria que as possibilidades são desfavoráveis à mudança, pela falta de clareza das alternativas políticas, mas as circunstâncias são favoráveis por causa do fim de linha desse jogo econômico estéril.

Valor: O que é incompetência, o que é traço de personalidade nesse desastre?

Delgado: A presidente tem duas grandes limitações. Imagina que é possível governar sem se fazer governável e imagina que, ao governar, ela diminui a sua qualidade como pessoa por causa da análise negativa que tem da sociedade política brasileira. Ela tem dois problemas que me parecem que estão na origem dessa incompreensão. O primeiro é que a presidente parece que considera esplendoroso o seu isolamento político. Vê valor e qualidade no fato de não gostar de política. O segundo é que passa a im- pressão de que o Brasil deve a ela algum favor.

Valor: O Lula também parece achar isso…

Delgado: Por motivo diferente, mas acho o do Lula mais compreensível. Não foi o Brasil que torturou Dilma, foi o regime militar. Mas foi a política brasileira, inclusive a de períodos democráticos, que pôs a família do Lula na miséria. Ele estendeu a mão aos pobres numa escala tal como nenhum governo antes. Os dois têm outra característica comum: minar a autoridade de qualquer decisão que não parta deles. Se ela não corrigir esse sentimento, vai continuar entendendo o impeachment como agressão pessoal. O que confunde a ideia do impeachment é a ilusão da Dilma de que o impeachment não é adequado para ela.

Valor: Ninguém acha, não é?

Delgado: A renúncia foi adequada para o papa Bento XVI. A abdicação do trono, a d. Pe- dro I. [Fernando] Collor não foi julgado por aquilo de que foi acusado. Da mesma maneira [Bill] Clinton foi julgado no Senado dos EUA em impeachment por perjúrio, não o que foi acusado originalmente. Ou seja, o processo de impeachment num caso como este que acontece no Brasil não visa a presidente que está. Visa o presidente que entra. É preciso que o governo seja compreensivo diante de sua natureza crítica para saber se conduzir com grandeza e nesse governo compreensivo têm que ser preservados programas do PT.

Valor: Seria um novo governo com o PT?

Delgado: Ou vai para a dissolução do Congresso e do governo e eleições gerais ou vai para um governo de composição, sem o afastamento hostil da presidente, com eleições em 2018 e todos podendo ser candidatos.

Valor: Entre o mensalão e o petrolão, as práticas foram mantidas, sem mudança de comportamento, nada, numa espécie de alheamento das questões morais, éticas, jurídicas. Qual é o problema?

Delgado: As tendências desse processo começam com a mistura esquerda-direita, em que, por exemplo, o setor empresarial se beneficia do setor político, com o assédio ao setor político. Confusão que deu origem aos processos a que a política está submetida no Brasil. Essa confusão foi produzindo tendências, essas tendências contaminaram as instituições brasileiras. Todas as instituições vivem sentimento de inércia e emergência. Ou caem na inércia ou vão para a emergência. Querem resolver as coisas improvisadamente. Ou não querem resolver nada. Querem deixar o tempo passar.

Valor: Há evidência concreta disso?

Delgado: A presença excessiva do Estado na sociedade. Não há um dia em que você não encontre na sua frente com alguém do Estado. Isso não é mais um fenômeno só da capital. Agora é da sociedade brasileira. No interior, na roça, na mais modesta cidade, na megalópole, ali tem um agente do Estado de colete, motorizado e nota fiscal infernizando sua vida.

Valor: Voltando ao impeachment, o Supremo errou no rito?

Delgado: O Supremo não é uma estação postal cujas decisões seguem a lógica do remetente e do destinatário conhecido. Se acertou na questão do rito final no Senado, errou redondamente na Câmara. Como proibir chapa avulsa em Parlamento com 35 partidos? Como obrigar líder a obedecer ao Su- premo e indicar nome? Votação aberta para julgar presidente? Um risco de constitucionalidade dirigida ou que nome tenha isso.

Valor: O impeachment, então, não vai re- solver nada?

Delgado: Pode resolver a primeira questão: é nulo o grau de liberdade de um presidente sem apoio popular. E ela não tem apoio para continuar. É muito pequeno o grau de influência de um presidente sem apoio congressual. O significado novo nessa história é a possibilidade de ela compreender essa questão, dar a volta por cima e querer abrir um caminho para a permanência de programas sociais relevantes do PT. É nessas horas que nascem os líderes. A presidente está numa encruzilhada. Se for para romper essa combinação de inércia e emergência que domina a realidade, ela abdicaria, abriria mão do governo, mas participaria da transição ajudando a formar um novo governo.

Valor: Renúncia?

Delgado: Abdicação. Se eu fosse ela iria ao Congresso, anunciaria que vai abrir mão do cargo e deixava claro o acordo necessário para completar o seu período.

Valor: Então só Dilma pode suspender o impeachment?

Delgado: E o marasmo de seu governo. Minha visão do impeachment é: todo governo é condicional e revogável, se estamos numa democracia. Se não é o Código Penal, não é o julgamento de quem sai, é a organização do governo de quem entra. Não exercer o mandato também é exaurir a democracia.

 

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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