Os Apelos de Putin

Os Apelos de Putin

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 22 de Setembro de 2013.

Os presidentes não precisam escrever artigos nem dar muita explicação.  A ego-política mundial é feita para consumo e o que o consumo mais gosta é do instante. A moda agora da política é cortejar o presente e transformar a história das nações em fumaça sem fogo. É tão grande o abuso do marketing e do slogan que acabou a inveja pelo futuro. O clássico sentido da vida pública não é mais a moral da história. Qual é mesmo a opinião do governante?  Esquece.  Está aí uma coisa que não dura mais tempo do que ela própria dura.

Uma das figuras mais contraditórias que andam por aí é o presidente russo Vladimir Putin. O ex-agente da KGB é daqueles líderes que já se meteram em tantas histórias mal contadas que é fácil colar qualquer coisa nele. E a fama que colou em Putin ao longo de seus vários anos de poder um tanto espetaculoso inclui o mau gosto de seus fotografados passeios por florestas e geleiras.

Ciente do desgaste de sua imagem, especialmente nos EUA, onde é visto como alguém que age como o “valentão do parquinho”, na descrição recente de um senador de Nova Iorque, o russo emplacou semana passada um distinto e sóbrio artigo no New York Times onde fala “diretamente com o povo americano e seus líderes políticos”. O artigo traz “um apelo da Rússia por cautela” da parte dos EUA na forma de lidar com a crise síria e pede mais diplomacia e menos bombardeio.

Expressar essa opinião foi um grande sucesso político para a administração russa e se soma à lista das contradições de Putin. Dessa vez pelo menos era uma contradição assinada e, como muitos tiveram que admitir, retratando Putin com qualidades impensadas.

O presidente russo ressalta em seu artigo que o tempo atual é de “insuficiente comunicação” com os EUA. Nesse vácuo, a imagem de Putin no Ocidente tem sido preenchida por fofocas e interpretações exageradas. Apesar de não ser necessário ir tão longe para se ter notícia de pessoas que têm suas imagens ardilosamente apropriadas, é claro que os mistérios das paixões que devastam a democracia russa cooperam para a facilidade na criação de embustes verossímeis.  Assim, essa necessidade de colocar na boca de outros o que cada um gostaria de ouvir aquela pessoa dizer, para bem ou para mal, fica bastante facilitada em tipos como Putin, figura dada a atitudes que fogem às vezes ao bom senso.

Bom exemplo dessa situação é um discurso atribuído a Putin, no qual menospreza as minorias presentes em seu país e faz especial ataque aos muçulmanos que querem viver suas vidas aplicando a lei do Islã, a Sharia. Apesar de nunca ter sido publicado por nenhum dos principais veículos de informação do mundo, permanece com ampla presença no vasto mundo da internet. A Rússia aparenta ser um lugar tão longínquo que o discurso tem até data e lugar: teria ocorrido na Duma, a Câmara Baixa do Parlamento russo, no dia 4 de fevereiro de 2013. A linguagem do texto é tão chula e com uma violência tão descabida que só o fato de parecer proferida por Putin já deveria fazê-lo pensar sobre o tipo de coisa que pensam que ele pensa. Afinal não parece possível que possa sair da mesma boca formulações como “os costumes e as tradições russas não são compatíveis com a falta de cultura ou os modos primitivos da maior parte das minorias”, como no discurso a ele atribuído, enquanto que no texto que ele assina para proteger seu aliado alauíta, assevera que “é extremamente perigoso encorajar pessoas a se considerarem excepcionais, qualquer que seja o motivo. Há países grandes e países pequenos, ricos e pobres, aqueles que têm longas tradições democráticas e aqueles que ainda estão encontrando seus caminhos para a democracia. Suas políticas também se diferem. Nós somos todos diferentes, mas quando pedimos as bênçãos do Senhor, não devemos esquecer de que Deus nos criou iguais”.

Estou certo que Putin não fez o tal discurso sobre minorias no dia 4 de fevereiro porque estava em Sochi, cidade onde serão realizadas as Olimpíadas de Inverno do ano que vem e também onde fica a principal pista de automobilismo do país. Lá se encontrou com Bernie Ecclestone, o mandachuva da Fórmula 1. A última vez que Putin falou à Assembleia Federal foi em 12 de dezembro de 2012, em cerimônia no Kremlin, como de costume. A mentira revela um desconhecimento do ritual russo onde a Assembleia é que vai ao Kremlin ouvir o presidente e não o contrário.

De fato, no longo discurso – e este, verdadeiro – disse que a Rússia não pode tolerar separatismo nem chauvinismo de nenhum grupo dentro do país, mas nada de classificações entre superiores e inferiores. Também não consta que discutir sobre minorias russas interesse a Ecclestone.

A quem serve os verdadeiros e falsos apelos de Putin ?

*****

PAULO DELGADO

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *