Os extracomunitários

Estado de Minas e Correio Braziliense – 10 de Julho de 2011

O mundo foi se tornando irrelevante para norte-americanos e europeus, seguros dessa imensa propriedade de dois donos. Napoleões modernos movidos pela política pura, essa atividade onde predomina mais ação do que motivos relevantes. A missão autoatribuída dos gigantes complicou-se justamente pela política. Na América, por falta de vigor ideológico dos dois partidos conservadores, o Republicano e o Democrata. Na Europa, pelo excesso de rigor ideológico dos inúmeros partidos nacionalistas, de direita ou esquerda. Uns e outros bloqueiam a criatividade e alimentam as crises e o ressurgimento de soberanias e barreiras nacionais.

Aos poucos, vão reaparecendo os conflitos das duas sociedades mais ricas: pleno direito para os nacionais, geralmente brancos, e limbo para os coloridos estrangeiros. Não é outra a motivação que levou na semana passada a Dinamarca a rasgar o Acordo de Schengen, que havia eliminado o controle alfandegário e imigratório nas fronteiras internas do continente e facilitado a livre circulação das pessoas. Logo, logo vem a morte da moeda comum, o euro, e cada país voltará a ser seu próprio mundo.

A trama básica do mundo continua a ser, inapelavelmente, o acesso ao consumo, à democracia e à liberdade. Seu excesso ou falta produz as consequências econômicas e demográficas que empurram as pessoas para fora de casa, pelo turismo ou pela migração.

A ONU continua dirigida por seu jogo de interesses ostentatório e obscuro. A Europa continua ambivalente na hora de reconhecer sua responsabilidade coletiva diante da crise econômica e dos conflitos atuais que se arrastam dentro e fora do continente. E os EUA seguem paralisados na esterilidade da sua luta parlamentar frente à crise financeira e a dificuldade de dar fim à estupidez de suas guerras no Afeganistão e na Líbia, que custam dois bilhões de dólares por semana. Situações graves e cumulativas são os três não reconhecerem seu principal papel na tragédia dos movimentos migratórios cada vez mais intensos.

Quem anda desorganizando de forma tão intensa nosso mundo? Um pouco a falta de solução que a urbanização descontrolada provoca ao atrair cada vez mais gente para as cidades. De outro lado, a péssima distribuição da população, com taxas de natalidade incontrolável nos países pobres e quase infertilidade programada no lado rico. É este descompasso demográfico um dos fatores que estimulam a contratação de trabalhadores e empregados para serviços manuais nas nações desenvolvidas. Não é por serem ricos que lhes sobram empregos modestos, é por serem poucos! Sem falar que é compreensível que alguém prefira ser pobre e com menos direitos em países ricos do que miserável em nações despóticas ou sem emprego.

Não é possível construir um mundo de turistas ocasionais, com sua positiva consequência econômica e cultural, enquanto predominar a inevitável circulação de imigrantes, refugiados e exilados, provocada pela irracionalidade das relações de poder. Especialmente porque agora as migrações não produzem mais o efeito que produziram no passado, ajudando a erguer as grandes nações que as receberam. Os continentes do mundo globalizado vão desaparecer pela volta das nações fechadas do mundo amedrontado.

O mundo não dispõe mais de uma filosofia da liberdade que seja consistente e compreensível, capaz de confrontar o realismo do medo e da insegurança. A inversão do ideal de liberdade em seu contrário de encarceramento e suspeição individual é uma das mais fortes mudanças de expectativa da vida moderna agravado com o 11 de setembro. O ideal totalitário e autoritário do controle da vida individual, do racismo e do limite à livre circulação das pessoas foi se impondo silenciosamente aos países democráticos pelas câmaras de vigilância, escutas telefônicas e bairros fechados de todas as classes sociais.

São a indignidade e improvisação no exercício do poder em todo o mundo, e a crescente vinculação da criminalidade com a política e o judiciário, que transformam os benefícios da globalização em migração forçada de gente de bem ou ousadia criminosa transnacional da turma do mal.

E o que podia ser livre faz-se desonra e prisão.

Paulo Delgado, sociólogo, foi Deputado Federal por seis mandatos.


Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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