Estado de Minas e Correio Braziliense, domingo, 21 de fevereiro de 2016.
Cirilo I, Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, está no Brasil pela primeira vez. Parte hoje de volta para a Rússia, mas ontem esteve com o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta, para lembrar o 95º aniversário da chegada de 1217 russos que buscaram refugio no Rio. Perseguidos durante a primeira guerra mundial fundaram aqui sua primeira igreja.
Dia 21 de março de 2016 desembarca, pela primeira vez em 80 anos, um presidente dos Estado Unidos em Cuba. O desejo de reaproximação expresso por Obama, desde antes de assumir a presidência, se confirmou em parte por conta de uma situação histórica específica que inclui a presença de um certo Francisco no trono de Pedro em Roma. Tempos auspiciosos busca trazer esse jesuíta argentino que assume riscos para impedir que a religião fique à margem da história.
Dias atrás, esse movimento foi visto na reunião celebrada também em Havana entre o Papa Francisco e o próprio Patriarca Cirilo I. O evento reuniu pela primeira vez em quase mil anos os ocupantes de tais postos de liderança religiosa e inspiração pessoal de milhões de almas. Movimentos anteriores de aproximação já tinham ocorrido em busca dessa reunião. Por exemplo, quando João Paulo II devolveu ao povo russo a imagem da Virgem de Kazan, negra como nossa Padroeira, que ele venerou durante anos em seu gabinete particular. Algo feito no mesmo espírito que animou, décadas antes, durante o Concílio Vaticano II, o cancelamento das excomunhões mútuas lançadas em 1054 no Grande Cisma do Oriente.
Gesto lançado por Paulo VI desde a Basílica de São Pedro em Roma e por Atenágoras I desde a Catedral de São Jorge em Istambul. Um gesto que veio, afinal, para valorizar a fé que une bem acima dos detalhes que confundem. Todavia, no século XX, como agora, apesar da primazia histórica do patriarcado de Constantinopla (hoje Istambul) sobre os Ortodoxos, é sob o patriarcado da Rússia que se encontra a maioria dos Ortodoxos. Por isso o encontro com o Primaz de Moscou era tão almejado ao longo dos anos. Com Francisco veio o esforço diplomático necessário dentro de contexto especial.
O Papa decretou o Jubileu da Misericórdia, Ano Santo que se iniciou em 8 de dezembro passado e vai até 20 de novembro do presente ano. Nesse contexto a Igreja Católica está conclamada a um aprofundamento do espírito do Concílio Vaticano II. Nesse bojo, o Papa se coloca em riscos como é, por exemplo, se aproximar de um patriarca russo extremamente próximo do controverso presidente Putin. Menos de um mês depois de receber amistosamente o presidente iraniano, cabeça do xiismo revolucionário.
Ainda que se preserve a reflexão e recato do cargo, o movimento conciliador das religiões não pode parar por causa da política. Porque o Ano Santo da Misericórdia encampa um período em que não só o encerramento do Concílio Vaticano II, de forte pendor ecumênico, completa 50 anos, como a própria Reforma Protestante completa 500 anos. É a partir daí que o Papa Francisco decidiu aproveitar o ensejo e assinalar a virtude contida no perdão e na reconciliação. As misérias humanas provocam cismas espirituais que proclamam o valor da violência e da destruição acima da paz e do congraçamento construtivo.
Em 31 de outubro na cidade de Lund na Suécia o Papa Francisco presidirá, ao lado do pastor presidente da Federação Luterana Mundial, a cerimônia em homenagem ao movimento lançado pelo padre agostiniano Martinho Lutero. O evento é visto como uma pedra fundamental no caminho ecumênico.
Caminho esse feito de forma mais desabrida atualmente, mas que, mesmo se dotado de estilo diferente, mantém o mesmo conteúdo avançado pelos últimos pontífices. Afinal, não foi o Papa Bento XVI o segundo pontífice desde sempre a visitar um local de culto islâmico ao estar na Mesquita Azul de Istambul em 2006?
O sábio Alceu Amoroso Lima, nas doces e apaixonadas cartas que enviou a sua filha Madre Maria Teresa, ao longo dos anos em que o Concílio Vaticano II captou a atenção e o espírito dos religiosos de todo o ocidente, observa que “são atitudes humanas pessoais que transcendem mesmo atitudes religiosas ou políticas opostas e irreconciliáveis”.
Alceu, que foi um dos representantes brasileiros no Concílio ao lado de Dom Helder Câmara, certa vez escreveu à sua filha exasperado: “Como compreendo o ódio de Lutero e os preconceitos dos protestantes e dos ortodoxos! Mal um homem como João XXIII ocupa a cátedra de Pedro, as forças da reação querem fazer em pedaços sua obra.”
Pensando bem, nos dias atuais, é o terrorismo, não a religião, o ópio do povo.
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Paulo Delgado é sociólogo
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