Palavras Russas

Palavras Russas

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 23 de Agosto de 2015.

Perestroika e Glasnost são duas palavras russas que dominaram o imaginário mundial antes do fim da União Soviética. O movimento de “reestruturação” econômica e de “transparência” política expressa por elas sacramentou o início da nova Rússia. Um país menor em um mundo maior. A reestruturação e a abertura tiveram como maior legado o fim da Guerra Fria. Não melhorou a Rússia que deprimiu profundamente. As trapalhadas e a corrupção impediram o surgimento de instituições verdadeiras em substituição aos frangalhos do coletivismo soviético. Para a esquerda tradicional o mundo foi muito mais beneficiado do que a Rússia. Nesse redemoinho surgiu Vladimir Putin, o gerente, com seu afã de restaurar a terra de Ivan, o terrível.
Rospotrebnadzor e Rosselkhoznadzor são os termos russos da vez. Lá estão eles nas mais espantosas notícias recentes sobre o país. “Rosselkhoznadzor destrói centenas de toneladas de comida” , reporta o Wall Street Journal na edição de sexta. “Rospotrebnadzor declara” que algumas das principais marcas de comidas ocidentais “fazem mal à saúde” e decide puni-las. Assim é a ladainha há mais de ano. Esses termos onipresentes do cavalo de batalha que anima a relação atual entre Rússia e Ocidente, na verdade são respectivamente os nomes do Serviço Federal de Supervisão da Proteção dos Direitos do Consumidor e Bem-Estar Humano e do Serviço Federal de Vigilância Veterinária e Fitossanitária. A importancia alcançada por seus atos diz muito da nova reestruturação e isolamento por que passa o país. Ambos têm se notabilizado por fecharem arbitrariamente estabelecimentos que vendem comida e bebida, e queimarem e enterrarem alimentos por razões politicas. O que estraga tais alimentos na perspectiva dessas agências é serem provenientes de países que condenam a ingerência russa na Ucrânia.
É claro que a Rússia reage a uma ação do Ocidente. Mas mirar o alvo nos alimentos é o fim da picada. Por conta da crise da Criméia, Estados Unidos e União Européia impuseram sanções à Rússia. Moscou retaliou impondo suas sanções. Reciprocidade, dirão. Tudo bem. Mas a questão é o que estão fazendo com os atos que baniram a importação de alimentos de seus antagonistas. Tais sanções fizeram aniversário de um ano neste agosto e ao longo desse período o preço da comida subiu em média 20% no país. A alteração só não foi mais drástica porque produtores de países proscritos montaram ardis para chegar ao mercado russo. Reexportou-se muita comida através de locais em Belarus, Turquia e Cazaquistão, os quais não estão sujeitos a sanções. Dias atrás Putin contra-atacou ordenando que suas agências caçassem e destruíssem os alimentos que cruzaram as fronteiras ilegalmente. O problema é que a Rússia importa 36,5 bilhões de dólares por ano em alimentos. Muito se pensou inclusive que o Brasil se beneficiaria dessa animosidade. Mas a substituição de fornecedores é mais lerda do que a ânsia em produzir factoides de enfrentamento. E factoide por factoide, por quê não dar a comida apreendida aos pobres?
A lógica da demonstração de poder bruto colocando em risco a saude básica das pessoas voltou a ser a tônica dos atos do Kremlin. Há 47 anos, nessa mesma semana de agosto, a Primavera de Praga era suprimida por tanques soviéticos. Como que desconectado do mundo, o Pravda, jornal porta-voz do Partido Comunista, que é hoje a segunda força política do país e a que mais cresce, estampa em suas páginas exaltação a Stalin e à bomba atômica como garantidores da existência da nação. O fato histórico não exime a opção política. Mas são as opções políticas que criam os fatos históricos e os conduzem a becos sem saída ou não. Como é hoje a área cinzenta da politica russa. De um lado, os conservadores nacionalistas de Putin, de outro, os comunistas saudosos de Stalin.
Mas o que enlaça hoje todo o país é a opção pelo subterfúgio. Sinais não apenas de deterioração de qualquer regime, mas de uma deformação interior. O uso insensível do impopular, a desonestidade como habilidade politica, são prenúncios de uma opção pela irrealidade.
Qualquer regime que queima comida em praça pública perdeu a noção daquilo que lhe outorga alguma legitimidade. Distante da simplicidade camponesa de um povo que tem a Matriosca, a boneca que se desdobra em várias, inspiradas nas múltiplas faces dos Sete Deuses da Fortuna da mitologia japonesa. E da Balalaica, o instrumento triangular de cordas feito para balançar o corpo em danças sem importância. A Rússia do povo se alimenta de forma mais sábia do que a do Kremlin.
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PAULO DELGADO é sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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