Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 22 de abril de 2012
O governo civil espanhol, sem novidade nos argumentos técnicos, qualquer sopro metafísico ou paciência humanista, mas muita esquisitice economicista e conversa fiada pseudopolítica, decidiu tirar 10 bilhões de euros da saúde e da educação para acalmar os mercados e o sistema financeiro internacional. A ordem para derreter a Espanha em depressão, chamar de austeridade ao que é uma insanidade, ninguém sabe de onde veio. O país continua com o maior índice de desemprego da Europa e uma superlativa incompetência para tratar do assunto. Ao mesmo tempo, greve de pilotos da sua maior companhia aérea, a Ibéria, cancelou mais de 600 voos semanais para todo o mundo, inclusive os esperados para partir ou chegar ao Brasil. O sindicato dos pilotos espanhóis informa que a greve vai durar e seu objetivo é impedir a criação da Ibéria Express, uma companhia de baixo custo, dessas que não respeitam passageiros, para enfrentar a crise.
No mundo atual qualquer notícia ou bobagem interfere na vida das nações. Logo produz imitação em cadeia e depois que todos se põem a imitar a novidade ninguém mais se lembra de alguém para botar a culpa. Mas, em sua pressão sobre os governos, as mudanças de horizonte e atitudes conduzidas pelo mercado e os sistemas de comunicação estão cada vez mais desenvoltas. Difícil saber de onde sai a ordem unida, gravada, filmada ou escrita, entregue a todos ao mesmo tempo, tornando impossível investigar seu autor. Um verdadeiro experimentalismo oculto movido por um emissor centralizado de opinião, que intimida ou incensa governantes, cria artistas e escritores “espetaculares” e espalha, por controle remoto, suas formulas e intenções de forma desenvolta.
No caso de políticas e planos governamentais, especialmente os de combate à incompetência dos próprios governos, estamos cada vez mais diante de espetáculos dos quais se espera que a proporção e a relevância do enunciado seja mais evidente do que a veracidade do que anuncia. Não há necessidade de correspondência entre a notícia e o fato. Depois da televisão, importante não é mais a verdade do enunciado de nada, mas seu enquadramento simbólico, como se o mundo vivesse dentro de um estúdio. Para uma autoridade, especialmente na política, mais importante do que o conteúdo do que vai falar é a decisão de como vai invadir a casa do telespectador: olhando diretamente para a câmara de forma intimidadora ou fingindo que a televisão não existe, sem encará-la de frente, simulando modéstia.
Exemplos engraçados e inofensivos também revelam este estado de coisas. Quando Lady Di casou-se com o príncipe Charles um dos maiores problemas da aristocracia inglesa era impedir que os cavalos, no cortejo entre o Palácio de Buckingham e a Catedral de Saint Paul, levassem a carruagem e ao mesmo tempo “fossem ao banheiro”. A transmissão ao vivo não permitiria esconder a possibilidade dos quadrúpedes emporcalharem o caminho dos noivos. Certamente foi sob a orientação de um diretor de TV que se tratou dos animais durante toda aquela semana com uma ração adequada. De tal maneira que a cor do esterco ajudou a compor o ambiente onde o trote aristocrático da cavalaria embalasse a breve e trágica história de amor que ali se transmitia.
Mas nem sempre a coreografia é de um conto de fadas. Os sistemas simbólicos tomaram conta do significado das coisas, misturando psicologia, política, computação, design e frases feitas para envolver o mundo nos mesmos valores, gostos e preocupações. Pessoas vistas como ícones, ideais de beleza, elegância, honestidade, inteligência e até de caridade surgem e desaparecem todos os dias. Há uma lógica inserida nesse novo mundo, de nova sociedade, economia e cultura: criar códigos mundiais independentes da capacidade tecnológica das sociedades, impondo uma descentralização universal dos processos de decisão. A luta pela sobrevivência diária se transformou, ao mesmo tempo, na luta para não ser excluído dessa sociedade massificada, onde o desenvolvimento tecnológico e a circulação das informações são muito maiores e mais rápidos do que o desenvolvimento social e a capacidade educacional de compreensão dos fenômenos.
O mundo carece de uma doutrina para modelar melhor sua nova fisionomia e que tenha a memória atenta às ideias de proporção, justiça e liberdade. O entendimento do que seja uma concepção justa da vida em sociedade depende da capacidade das instituições sociais envolverem a todos em suas decisões. Para isto, a manipulação ou a limitação do acesso à informação devem ser evitadas e impedidas. Assim como a inobservância ou obediência parcial às leis devem ser contidas para que a deterioração da transparência não falsifique a realidade cotidiana. E caso uma autoridade saiba pouco ou nada da vida e do sofrimento das pessoas, não deveria pretender agir em nome delas.
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.
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