Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 6 de novembro de 2011.
Quem acompanha a discussão sobre alternativas para se enfrentar a crise econômica mundial se depara com uma grande confusão. Virtuoso desinteresse mútuo é uma expressão distante das cúpulas mundiais de economistas e governantes. O que se vê é o contrário: ninguém abre mão de nada, mesmo diante da solidão que é governar desempregados e da notória vantagem que é ser bem sucedido em tempos de paz.
Quando governos ficam à vontade de atribuir responsabilidade aos dilemas dos outros, sem desenvolver preocupação com a origem coletiva do descontrole atual, estamos diante de um aspecto negativo do sentimento de culpa. Há uma desconfiança política de que o governo da Itália tenha realmente vontade de se ajustar às exigências europeias em relação à sua economia. A isso se soma o mal-estar que são as incertezas vindas do estado de espírito do povo grego. O desamparo irlandês, português e espanhol diante do resgate de suas dívidas, igualmente descontroladas, reforça bem a ideia de que não existe um Tesouro comum europeu que as proteja do descrédito.
Enquanto isso, França e Alemanha, sem memória, se esquecem de como foram ajudados depois de destruídas na Segunda Guerra. E somos obrigados a ouvir o presidente francês, em um esforço máximo de sua inteligência, dizer que não sabe por que a Inglaterra vai às reuniões da União Europeia, já que o país da rainha “não gosta do euro”.
Os arranjos institucionais, socioeconômicos, que tomaram conta do mundo, não dão conta do estrago que fizeram na psicologia das nações. Perdedores e vencedores vão se aproximar rapidamente uns dos outros e dissolver a noção de mérito, esforço e talento que deveria orientar a busca do bem-estar. Por que ainda não nos demos conta que o cidadão comum pode ter ideais maiores do que os do seu país? E por isso deveria estar protegido da irresponsabilidade de governos e poder tocar sua vida em segurança.
De Nova York, o movimento Ocupem Wall Street parece dizer que em relação aos direitos fundamentais a função do Estado é reconhecê-los e assegurá-los, não distribuí-los. Porque é justamente na hora da distribuição dos benefícios que as conexões políticas e os interesses de classe se infiltram e passam a chamar de “lógica do mercado” ou “vantagens legítimas” o que é a mais deslavada injustiça. Os governos são duros quando impõem contrapartidas comportamentais para os pobres e desprotegidos e frouxos para impor condicionalidades morais ao sistema bancário e financeiro. Governos que, por razões eleitorais e falta de idealismo e senso de medida, acabaram contribuindo para o triunfo do ultrajante slogan “É a economia estúpido!”, um verdadeiro despedir-se da boa governança baseada em princípios do bem comum e fundada em virtudes públicas.
O economicismo invadiu todas as áreas das decisões e ações governamentais nos últimos anos, deixando pouco espaço para a escolha racional e a gestão pública da política econômica. O raciocínio econômico puro domina as discussões em áreas tipicamente de políticas sociais, como saúde, educação, segurança, transporte urbano, que podem ter bons fundamentos não econômicos se os governantes assim o quisessem. O desenvolvimento econômico sem liberdade de iniciativa, busca da equidade e sem ser movido por escolhas e responsabilidade social cria nações frágeis, Estados tecnocráticos, contratos sem altruísmo, onde a Economia está separada do direito.
Quando a economia política não se orienta pela noção do bem público, nem está baseada em princípios conhecidos e partilhados por todos, não há como orientar os cidadãos para bons arranjos da vida social. O modo como as pessoas e as instituições públicas e privadas trabalha deriva dessa interpretação de como os governos toleram as coisas. E se daí não surge uma visão justa do que sejam os benefícios para todos, só resta o protesto. É a indignação diante da clara injustiça na distribuição das consequências da crise atual o motor das manifestações na Espanha, que acabaram por se espalhar pelo mundo. É este também o sentimento transmitido pela ação dos confusos líderes mundiais, concentrados somente nos aspectos bancário e financeiro da crise e tolerantes com os erros que os produziram. É, pois, reconfortante ver o Brasil dizer em Cannes que a proteção social é parte inseparável da decisão econômica.
A reconciliação dos diversos países entre si é o maior legado da União Europeia. O idealismo cívico, e a busca da justiça, é a maior lembrança da última campanha americana. O fracasso dos dois sistemas de poder — o europeu e o norte-americano — pela ganância financeira e o desmanche do Estado de bem-estar social, não vem encontrando, nas instituições tradicionais do Estado Democrático de Direito, os instrumentos para evitar seu colapso.
É por isso que é forte o sentimento de injustiça que ronda o mundo. Falta um tribunal para julgar essa crise sem sentido, onde poucos podem destruir todos: um Tribunal da Consciência Individual e da Responsabilidade Universal.
Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.
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