Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 2 de setembro de 2012.
Países democráticos têm comportamentos muito parecidos com indivíduos de boa educação: domínio de si e reserva quanto às próprias virtudes. Muito da boa convivência entre pessoas e países é resultado da força das ideias humanistas, mais do que de vinculações políticas e ideológicas. Há polidez e grosseria, sinceridade e conveniência, à direita e à esquerda. Na vida pública, o protocolo e a hierarquia dispensam a autoridade de dar provas permanentes de que não está concedendo privilégios ou se submetendo à lei do mais forte. Isto porque os benefícios que desfruta ou concede são resultados das funções e cargos que ocupa, ou dos códigos partilhados de contato com quem se relaciona. Na vida pessoal, a honra que se presta a quem merece não deveria nunca precisar ser reivindicada. Na vida das nações, é bom sempre estar atento para os segredos e o desprezo dos detalhes da boa convivência.
A Inglaterra, que procura se mostrar pragmática e exequível, sempre foi uma nação movida por fatos concretos. Também, talvez por isso, não consiga superar os reflexos ambiciosos e abrangentes de sua Esquadra Naval do século XIX, que expandiu o Império Britânico por meio mundo, conformando o Reino Unido atual. Da Magna Carta à Declaração de Direitos, passando pela Revolução Gloriosa de 1689, a identidade inglesa construiu-se pela limitação da ação do governo, a criação do habeas corpus, e o fortalecimento das liberdades individuais. Tudo isso muito antes da Revolução Francesa. O primado da lei desafiava prerrogativas do rei e abriu caminho para que, em bela proclamação, se afirmasse que a “justiça não será vendida, recusada ou retardada a ninguém”.
Nos documentos históricos produzidos pela Guerra de Independência dos Estados Unidos, justamente contra a Inglaterra, não há menos furor na defesa dos direitos. E no mais importante documento da nação, a Declaração de Independência, é difícil achar coisa mais surpreendente na história das nações: “Consideramos que essas verdades dispensam justificação, que todos os homens são iguais, que o Criador lhes concedeu certos direitos inalienáveis e que entre estes são a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. A impertinência da história cuidou de zombar dos textos majestosos e lembrou a ingleses e norte-americanos que colônias e escravos não combinavam com o que estava sendo escrito.
Agora, numa indiferença insultante aos seus fundamentos legais e históricos, os dois maiores povos de língua inglesa, como gostava de dizer Winston Churchill, decidiram se unir para invadir a Embaixada do Equador em Londres. Para isso, pretendem rasgar o princípio da imunidade diplomática e a excelente reputação de seus textos libertários, com o objetivo de, simplesmente, prender o extrovertido hacker australiano que divulgou documentos diplomáticos confidenciais do governo dos Estados Unidos. Se for levada ao limite e executada a decisão dos dois países, certo mesmo é ver agredida a afeição que grande parte do mundo dedica à democracia na sua forma anglo-americana.
A Inglaterra sabe bem o quanto deve aos norte-americanos, mas não precisa pagar em moeda de tão baixa e perigosa circulação. Por sua vez, o governo Obama deveria é estar satisfeito com o vazamento dos telegramas, que expõem o baixo padrão da ação institucional de inúmeros funcionários de sua política externa e, mais recentemente, da rede de espionagem eletrônica, montada, por ex-agentes de inteligência, segurança e defesa, para monitorar todos os cidadãos dos EUA.
As estripulias da WikiLeaks mostram bem como certas autoridades, em suas conversas confidenciais e informais, demostram pouca virtude e inteligência. Mas foi também uma completa decepção para cidadãos de vários países ver como são tratados os negócios estrangeiros, especialmente quando bobagens e compras lucrativas vêm vestidas com o figurino de segredos patrióticos.
A imunidade diplomática não pode ser sacrificada pela aspereza da política. Claro que sempre aparece alguém que abusa das próprias prerrogativas e viola as leis do país a que serve. São muitos os segredos e hipocrisias que transformam em benefício pessoal a imunidade concedida à função pública no exterior. Nada porém sustenta a ameaça de retirar das Embaixadas a inviolabilidade de suas sedes, negando a imunidade de jurisdição, que dá autonomia à missão diplomática para abrigar perseguidos e conceder asilo.
Isto sem falar que acreditar falsamente é, às vezes, a saída para um bom negociador. Pois como em política internacional é difícil separar o que é aparência do que é virtude, manter a inviolabilidade das Embaixadas permite, nesse caso, preservar as duas coisas.
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.
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