WYOMING

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Correio Braziliense e Estado de Minas –  domingo, 21 de Agosto de 2016.

O estado de espírito da humanidade tem perturbadoras semelhanças com o desenrolar da sucessão nos Estados Unidos. É possível estabelecer conexões entre as tensões que alimentam os desejos individuais e a incapacidade para viver dentro de regras civilizatórias. Apesar de saber que a racionalidade não passa pelo crivo da análise política, é certo que, considerado sob o prisma da liberdade de opinião, querer ser presidente dos EUA fornece um quadro importante para refletir sobre a insatisfação humana e os momentos de tensão acumulada que levam a mudanças e tragédias. O que muda nesta sucessão é o tom conformativo que ajusta o indivíduo na sociedade. E que gera sofrimento, fruto da escassez e do excesso. Há,  hoje, um pavor de liberdade e entendimento.

Não é à toa que os ingleses, fundadores dos EUA, pedem o retorno das fronteiras na Europa e Donald Trump, seu filho espetacular mais recente, sustenta sua candidatura sobre a proposta da construção de um muro físico entre os EUA e o México e outros tantos muros legais com relação a outros. Há grande número de descontes com a liberdade que passou a carregar consigo – pelo crescimento populacional e a disfuncionalidade da política para entender o mundo – a conotação de bagunça e permissividade.

Por que Donald Trump? Eis a pergunta que desconcerta a todos nos dias atuais. Logo nos EUA, onde o termo populista é um dos maiores xingamentos políticos que se pode atribuir a um homem público. “A Maioria Silenciosa Apoia Trump”, lê-se em um dos cartazes mais presentes em eventos do candidato republicano. Arvorar-se em porta-voz de uma “maioria silenciosa” é fato recorrente na história das estratégias eleitorais. Aí está o cerne da estratégia de Trump, defender os cidadãos que se sentem alijados dos encaminhamentos traçados pelos políticos do “sistema”.   Hillary, afinal, tem as características comuns aos presidentes americanos das últimas décadas. Até mesmo a maior novidade que traz consigo, o fato de ser mulher, alinha-se na trajetória bem fundamentada de desenvolvimento da sociedade. Todavia, ela também carrega o ônus de ser a candidata natural em um período de baixa legitimidade dos governantes ante a um forte descrédito da política.

Curiosamente, um dos livros mais interessantes de Ciência Política lançado em 2016 se esforça justamente em trazer uma solução para o descrédito da política. “Above Politics”, que em português traduz-se literalmente como “Acima da Política”, faz uma defesa bem-fundamentada da importância da burocracia. E isso baseado nas instituições dos Estados Unidos e certamente buscando influenciar formadores de opinião daquele país. A discussão gira em torno do cerne da política. Ou seja, a quem é alocado poder para tomar decisões que impactam a coletividade. Capaz de gerenciar bem o binômio “execução de contratos” e “direito de propriedade” para além de instabilidades e paixões do jogo político-partidário, transcendendo ao ciclo eleitoral.

São assim, na verdade, duas as falanges que combatem a política em nome do descontentamento popular. Uma composta por radicais que dão braçadas fora da estrutura de representação política majoritária e outra composta por burocratas que se julgam acima do bem e do mal, algo que às vezes escapa à percepção e compreensão do público. Os heróis não políticos sempre se aproveitam do sistema disfuncional para virarem políticos.

Trump não congrega todas as características do período, sendo apenas parte dos radicais “independentes”, mas faz com que todas se movimentem a seu favor.   Representando a forma mais antiga de capitalismo na América, ele se aproxima mais ao que anseia a classe média desapontada com os anos de desemprego seguintes ao colapso de grandes corporações e ao realinhamento da produção global.

Quando Kennedy foi assassinado, no princípio de sua campanha à reeleição, seu embaixador em Paris, Charles Bohlen, descreveu ter a impressão de que o futuro se afastava do presente. Há momentos que causam isso. Trump é um rebaixamento da nostalgia, mas, ao mesmo tempo, uma opção pragmática para o americano clássico sem maiores responsabilidades com o futuro do mundo.

Lembra, dizem meus amigos, de Al Pacino, personagem de Um Dia de Cão, filme policial de Sidney Lumet, Oscar de melhor roteiro em 1975. Quando o personagem principal teve que decidir para onde fugiria, condenado a não mais voltar aos EUA, não pensou duas vezes: vamos para Wyoming. Um estado despovoado, do velho oeste americano, a síntese escondida do mundo, no coração do homem médio americano.  Eleitores de Trump.

 

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PAULO DELGADO  é  sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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