A Guerra Acabou

A Guerra Acabou
Estado de Minas e Correio Braziliense, domingo, 29 de Maio de 2016.

Quinta e sexta-feira passadas, o Grupo dos Sete, formado pelas maiores economias desenvolvidas, se reuniu na idílica região japonesa de Ise-Shima para sua conferência anual de chefes de Estado. Na agenda oficial, a rotina: redução do crescimento econômico global, terrorismo, crise humanitária envolvendo o Oriente Médio e a Europa, além dos conflitos em andamento mundo. Dias antes, ao sul dali, uma histórica decisão moveu peças importantes no xadrez em que todos esses temas estão bem presentes. Tran Dai Quang, presidente do Vietnã, recebeu Barack Obama no palácio presidencial da capital de seu país. Lá celebraram a colocação da pedra final da longa normalização das relações diplomáticas entre ambos os países. Obama retirou o embargo à venda de armas àquele que é hoje um dos dez maiores compradores de armamento bélico.

Após o fim da Guerra do Vietnã, em 1975, Washington e Hanói não mantiveram relações diplomáticas por 20 anos. À época da normalização das relações, houve muita resistência na opinião pública americana, teoricamente inimiga do Partido Comunista de qualquer país. Veteranos que se tornaram políticos, como John Kerry e John McCain, foram fundamentais para aplacar a insatisfação. Ajudavam a argumentar sobre a importância da boa relação com o Vietnã. De guerra em guerra, a fim de garantir interesses geoestratégicos estadunidenses na região, era hora de acabar com a lendária e mística “Guerra do Vietnã”. O governo vietnamita atual, assentado nas doutrinas de Ho Chi Minh, suavizadas por uma pragmática adequação às forças que regem a economia mundial, vem obtendo resultados formidáveis no crescimento econômico. O Vietnã, abraçou a seu jeito, o mantra que vem resultando em impressionante desenvolvimento no leste asiático.

Edward Gibbons assinalou, em sua magistral História da Decadência e Queda do Império Romano, que as diversas religiões que existiam em Roma, eram todas, consideradas pelo povo, como igualmente verdadeiras e, pelos políticos, como igualmente úteis. A Guerra Fria, com sua divisão maniqueísta do mundo, avançou em arroubos quase religiosos enquanto assim era útil. Quando o adversário principal, a União Soviética, capitulou no início da década de 1990, passou ser útil pregar a união, tolerando os “desviantes”, desde que não desviem demais da unipolaridade mundial. O Vietnã é observador-participante dessa dinâmica de evolução da economia política global.

Quanto mais se aproximava das duas décadas finais do século XX, e com elas o desmoronamento da URSS e a evaporação de um horizonte com uma alternativa socialista clássica no mundo, mais se presenciava a retomada do comércio global. Com o desalinhamento de fato por parte da China na década de 1970 e a queda do muro de Berlim em 1989, fracassou o governo comunista de Moscou, que viria abaixo, por fim, no último dia de 1991. Já em 1995 os EUA reabraçaram Hanói, entendendo o Vietnã como importante fator para balancear a força chinesa.

A afirmação do modo de vida capitalista, baseado numa sociedade consumista ancorada numa produção expansionista, alastrou-se sem opositor óbvio e organizado. E o mundo foi, satisfeito e em paz, às compras. À exceção de suas próprias vicissitudes, que expõem mazelas muitas vezes atribuídas ao caráter assimétrico do balançar do mercado – que alguns latino-americanos querem controlar, não para diminuir a assimetria, apenas para distorcê-la em outra direção – pouco se levanta, de forma convincente, contra. Não se vislumbra alternativa real à ânsia progressista, o que se discute é como assegurar um lugar ao sol no sistema em vigor. Tal princípio, organizações como o reinante Partido Comunista do Vietnã, entenderam com clareza e se encaixaram com perfeição.

Nessa busca, os países do Leste Asiático foram os mais assertivos e bem-sucedidos. Atrelaram seu crescimento ao consumo massificado global. Produzem para exportação, adoram importação e, assim, com disciplina e produtividade elevada, tornaram-se irresistíveis aos olhos do capital internacional. A política industrial promovida no Leste Asiático, em países cuja burocracia era competente e disciplinada, foi um sucesso. Todavia irreplicável em outras plagas, já que tais quesitos – competência e disciplina – são na verdade um dos resumos de todo o aparato institucional que remete à própria formação filosófica desses países. E que os EUA, desde o confronto com os japoneses na 2ª Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, cada vez mais temem e admiram.

Os EUA precisam do Vietnã para balancear a China assim como precisaram da China para desestabilizar as pretensões soviéticas do final no passado. É conversando sobre guerras que quem manda fala de paz.

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PAULO DELGADO é sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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