Mediterrâneo
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 25 de novembro de 2012.
Parece que existe uma cadeia de comando intelectual, separada das demais formas de conhecimento, bloqueando a compreensão do Oriente Médio. Uma significação forjada, homogênea, às vezes desintegrada, abrange aquela parte do mundo onde se desenvolveram, em primeiro lugar, conhecidas instituições de poder. Por razões que nenhum estudo, sozinho, tenha conseguido explicar sem se valer de preconceitos, generalidades e distinções, a região, politicamente, sempre se mostrou volátil, explosiva e imprecisa. Mas espiritual e intelectualmente segue “profética” , “heroica” e ortodoxa nas mãos de governos hábeis em monopolizar tudo para produzir polarização.
Quando boa parte da Europa era composta de lugares relativamente atrasados, esparsamente povoados e pobres em relação às áreas mais pujantes do globo, sua região mais avançada beirava o Mediterrâneo. Esse mar temperado, cujo nome queria dizer o mar no centro da terra, banha povos que adotaram as três maiores religiões monoteístas do mundo. Na região, as áreas mais desenvolvidas eram aquelas mais envolvidas com o comércio, de mercadorias e ideias, entre o norte da África (hoje Egito, Líbia, entre outros), a Anatólia (hoje Turquia), o Levante (hoje Israel, Síria, Palestina, Líbano, entre outros) e o sul da Europa (hoje Grécia, Itália, Espanha, entre outros). Seja política, econômica ou militarmente, todos os países da região estão às voltas com uma grave crise. Estranha sina de povos com forte pendor para a amizade, as artes e o humor.
Na época medieval, islamismo, judaísmo e cristianismo forneciam os aparatos institucionais que moldavam a vida na sociedade mediterrânica. Como é de se esperar, cada uma dessas burocracias dominava a região onde detinha o poder político. Desde o hábito de criar empresas envolvidas em exportação-importação, havia uma tradição sustentada por contratos gerais. E o comércio, misturado às minorias de confissões diferentes, fazia com que todos os mercadores das cidades mais pujantes tivessem contato entre si e, por conseguinte, com o modo estrangeiro de produzir e fazer negócio.
Curiosamente – e decisivamente – nas áreas sob domínio do Islã os não convertidos eram livres para instituir e adotar as próprias regras e se submeter às próprias cortes. Mais curioso ainda é que boa parte das minorias e dos estrangeiros envolvidos em negócios com o mundo islâmico preferiram durante vários períodos se submeter às regras islâmicas, e assim o faziam. A questão aqui era que o mundo islâmico, além de maior tolerância, tinha também instituições que eram mais amigáveis aos comerciantes, permitindo-lhes ser mais produtivos e criativos. À época, os judeus, minoritários tanto entre islâmicos como entre cristãos, eram essenciais no encontro e na harmonização dessas culturas. E, nem sempre, divergências significam ameaças de extermínio pessoal.
A separação entre Europa e o mundo islâmico acentuou-se quando os europeus passaram a construir um arranjo institucional mais pragmático e favorável à poupança, à pesquisa e à produção. A partir daí – o racionalismo do capital e o movimento da reforma protestante –, aumentou-se a permissão e os estímulos para que se copiasse não apenas práticas, mas também as tecnologias mais avançadas, encontradas seja onde for. Por outro lado, os muçulmanos ficaram mais presos a seus arranjos tradicionais, que, antes modelares, passaram à rigidez e ao imobilismo, enredados em uma disposição menos árabe e mais islâmica. Especialmente, a lei islâmica antes boa e justa para o comércio em um mundo de más ou insuficientes leis e tradições, passou a ser uma lei atrasada por não se ajustar ao mundo em que copiar o melhor dos outros, e andar para frente, tornou-se a regra.
A história tem idas e vindas, e é inegável que boa parte do tempo desses povos condenados à vizinhança eterna foi mais desperdiçada com ódios e extermínios do que com compreensão e aprendizado mútuo. Mas é igualmente certo que os tempos de pluralidade e de maior aprendizado e trocas com o estrangeiro são aqueles que produzem maiores avanços. A dificuldade recente é a antipatia pela pluralidade, que sobrevive na região fazendo da “voz das armas” a raiz de todos os problemas.
Nenhum país do Oriente Médio atual aposta em instituições que desempenhem o papel de instrumento na busca de justiça para todos. Ao impor uma certa noção de hierarquia geográfica e de fé para definir o poder, o que se vê é a opinião particular predominar sobre o raciocínio e a razão como elemento de argumentação – mania que, de resto, tomou conta de toda a política mundial. Assim, ficou muito fácil para instituições militares, suas forças, comandos e controles, oferecerem os argumentos que dominam a política da região.
Só que doutrinas sustentadas por paixão não produzem paz.
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PAULO DELGADO é sociólogo.