Faça a coisa certa
A esperança nunca morde seu freio no dia em que se manifesta
Em um único dia séculos de preconceito viram poeira. Os EUA não se fizeram de voluntariosos e assumiram, como se diz hoje saboreando a moda vocabular. Mas nada está em vigor, enquanto tudo não estiver em vigor. O melhor da democracia é que com ela a certeza vacila. Todo líder será fragmento e pó se estiver aquém do que mobiliza. A vitória é devedora da esperança, credora da frustração. Jazz, blues, rock, soul. Maravilha de América: antecipou na cultura o que pode oferecer na política.
O país em crise livra-se da carga pesada, e faz a mais cara eleição de sua história, temendo a escassez. Usa o individualismo progressista para capturar a imaginação e a paixão popular e salvar o livre mercado do egoísmo possessivo do pro alto ou pra fora de Wall Street. Os EUA enfrentam seu próprio desapontamento, com uma sensação vaga de oportunidade. Os republicanos nada têm a oferecer. Os democratas querem ir de Hillary, buscam ser ousados, temendo ser prematuros. Só que Hillary é Clinton e governando oito anos são dezesseis, que somados aos vinte e quatro dos dois Buhs, contados os oito dos tempos de vice de Reagan, seriam quarenta anos de duas famílias no poder. Demais para qualquer democracia.
Em janeiro, em Nairóbi, a limpeza étnica e o genocídio sangraram entre tribos, agravados por fraudes nas eleições que reelegeram o presidente Mwai Kibaki. Esta semana, no mesmo Quênia de tantas atrocidades, foi decretado feriado nacional porque a avó e o pai do presidente eleito na América nasceram na província de Kogelo, sem luz elétrica até hoje. O tirano africano escalpela a nação, deposita o butim por aí, mas teme o badalar do sino e deixa o povo dançar.
A esperança nunca morde seu freio no dia em que se manifesta. Ao respirar o espírito do país e vencer as eleições, a perspectiva dos governados, cidadãos contribuintes, é sempre mais clara do que a dos governantes. Compartilhar a alegria pública de uma vitória política pode salvar a alma do desespero. Principalmente agora, tempos de crise, em que votar no vencedor sobrepuja o martírio das perdas pessoais. Isso não é estar de acordo com a forma de governar do vitorioso, uma incógnita. São tantas as frustrações, com o sucesso privado de poucos e a decepção pública de todos, que é melhor acreditar em símbolos.
Cidadão e consumidor nunca estiveram tão próximos como nesta eleição americana. Com mais conflito de personalidades do que programa de governo – país de tantas virtudes e desigualdades – a eleição ofereceu a clássica alternativa entre segurança e prosperidade. Mas a cultura da integração tinha avançado mais do que a política da igualdade. Aproximar cultura e política é um bom exemplo de que a democracia revigora a economia e de que os cidadãos podem prosperar e se distinguir pacificamente. O conflito entre a América excepcional dos conservadores, e a América com todos dos liberais, mostrava que só se muda a realidade de um país se a nação se move de forma compreensível. E aconteceu o que todos ansiavam desde que Mandela saiu da prisão, e se mostrou melhor que seus algozes. Um oprimido livre, altivo e conciliador diante de um dominador moderado, mas inconstante e impulsivo, interpreta a alma do povo quando ele decide pagar para ver.
Até Lyndon Johnson, que criou o Ato pelos Direitos Civis, tornando a discriminação ilegal entre negros e brancos, é vitorioso. Mas não como Martin Luther King, o precursor, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, e depois foi assassinado. Ou Cassius Clay, que perdeu o cinturão de campeão mundial de pesos pesados por recusar a ir para o Vietnã. Guerra perdida que fez do soldado MacCain herói nacional. E é o filho de imigrantes, desterritorializado no Hawai e na Indonésia, que vence o ianque pioneiro, tantos anos prisioneiro no Sudeste da Ásia. Convivência saudável de destinos que só podem se expressar com liberdade. Que tal compartilhar o princípio com todo o mundo, presidente Obama?