Épocas de fervor no continente
É mesmo um estilo. São inventores de circunstâncias estes líderes latino-americanos. Começam promissores, terminam prometedores. Combatem ficções que deram errado — o neoliberalismo — com outras que não darão certo — o neopopulismo. Até lá vão ampliando para toda a sociedade seu instinto de desconfiança, maneirismo ideológico destinado a usar o povo como instrumento de atemorização. Além da volúpia de controlar o entendimento da história e confundir os fatos com suas noções próprias de moral e bons costumes. Vão também contornando a lei, emendando-a, adaptando-a à nova ordem. De preferência para ficarem eternos e inalcançáveis, como as sombras dos velhos regimes.
Tempos de crispação, da jurisdição do irritante, alimentada todo dia por governos da fase oral da política — hablaciones demasiadas. Visam e tendem a reduzir a cidadania à manipulada idéia das posições políticas. Querem ver as necessidades internas de seus países compreendidas como méritos. Quanto pior, melhor. Nesta inaptidão para a normalidade e o passar do tempo institucional, o horror à velha evidência: a demagogia serve ao demagogo e não rima com ideologia. Quando as idéias viram deus, vai-se a inteligência, a criatividade trocada pela cumplicidade e compadrio. Será sempre assim, essa noção de fair play popular que tem certos governantes latino-americanos? Muito barulho, confronto, pouca moderação e sossego! Ações ineficazes e imodestas divulgadas como grandes momentos do autoritarismo regional.
É notória a relação positiva entre comércio e paz e desconhecer isto agrava o déficit de civilização em nosso continente. Diplomacia econômica, boa vizinhança e relações multilaterais são fatores essenciais para modernização e eficácia da gestão governamental na região — apesar do FMI, Banco Mundial, OMC ou bobagens da vulgata econômica dominante. Afinal, o comércio é um bem público internacional e pode até prosperar em ambientes de marcada hostilidade. Mas nunca de violação de contratos. Veja o caso do Oriente Médio, que sabe bem estabelecer a gradação dos seus diversos fanatismos, preservando interesses comerciais e acordos.
Aliás, só Albânia e União Soviética acreditavam na negociação ideológica de mercadorias. O resultado é conhecido, tanto quanto o seu oposto oferecido pela China, que soube estimular suas forças produtivas à expansão internacional e cooperação interna.
Para ser país relevante não basta ter riqueza natural. Normas e comportamentos previsíveis e sem segredo também são riquezas e recursos nacionais. Em democracias estáveis não há interesse do Estado, do povo em geral. Há interesse da Lei, da Justiça, do indivíduo em particular. Ou o processo eleitoral é uma armadilha para os derrotados e um vale-tudo para os vitoriosos?
Claro que muitos países são iludidos com a monocultura e sonham ou pensam ser um Emirado Árabe. A própria Petrobras desde que passou a ser dolarizada deve pensar que pode aceitar desaforo. Ou será que, tomada de indolência pública, meteu-se em maus lençóis? Afinal, é fácil prosperar nas águas profundas e obscuras das mesas de câmbio. Outro lado do fervor fanático regional usado, aqui, como instrumento para atemorização do povo — os interesses financeiros da moeda e de seus guardiões aduladores de governos.
Não se demonstra razão com intimidação no sistema democrático. Nem esta inovação, o unilateralismo comercial dos pobres, é boa receita contra o protecionismo ou o imperialismo dos ricos.
O certo é que há outros exemplos de sucesso de líderes e nações que conseguiram compreender e superar o passado dos seus países, ultrapassando os esquemas ideológicos hobbesianos e maquiavélicos sempre em voga na região. Nelson Mandela falava em verdade e conciliação e não se considerava vítima nem herdeiro de ninguém. Pretendia-se, e foi, um bom governante. É o suficiente. Enfim, democracia social e prosperidade econômica exigem elites preparadas, de qualquer origem social ou étnica. E no continente o problema não é o povo, mas, sempre, o fervor retrógrado de quase todas as elites, inclusive as populares.