Entrevista – Paulo Delgado – “O Congresso não é um clube social”
Petista afirma que seu partido estimulou a infidelidade partidária para ter maioria no Congresso
Especial/Valor Econômico
Cristiano Romero e Rosângela Bittar
De Brasília
Um dos principais articuladores da candidatura de Luiz Eduardo Greenhalgh para a presidência da Câmara, o deputado Paulo Delgado (PT-MG) vê transformações políticas importantes nesse processo de sucessão. Diz que a candidatura “avulsa” de Virgílio Guimarães contraria a unidade de ação e a fidelidade partidária, duas características históricas do PT. Ela revela ainda o enfraquecimento dos partidos políticos no Brasil. “O candidato avulso reflete um movimento conservador. Trata-se de um movimento geral contra os partidos e os políticos”, afirma Delgado nesta entrevista ao Valor .
Há muito uma voz crítica dentro do PT, o deputado mineiro acredita que o governo Lula, ao montar a sua maioria no Congresso, contribuiu muito para o quadro atual. Seu partido, lembra ele, estimulou mais de uma centena de deputados a mudarem de legenda, abandonando as siglas de oposição e entrando nas que integram a base aliada do governo no Congresso.
Delgado pretende incluir, no plebiscito que o governo realizará este ano sobre desarmamento, consulta à população sobre três temas da reforma política – fidelidade partidária, voto em lista fechada e financiamento público de campanha. Ele sustenta que somente uma pressão, vinda da sociedade, forçará a classe política a promover essa reforma, que Delgado considera crucial para a estabilidade política e econômica do país.
Valor: No PT, quando o partido fecha posição, não há desobediência. Por que isso está acontecendo agora?
Paulo Delgado: O PT nasceu exatamente contra isso. Nasceu do esgotamento do sistema bi-partidário dos anos 80 e da tentativa do governo de construir um sistema pluripartidário controlado, domesticado. O PT rompe com a idéia do partido informal, oligarquizado, sem direção e disciplina. Foi o primeiro partido a ter disciplina partidária depois do regime militar, tanto que foi considerado um escândalo não ter ido ao Colégio Eleitoral (que elegeu Tancredo Neves em 1985). Foi um escândalo mais pelo vigor da decisão do que pelo seu próprio conteúdo. Uma outra maneira de atuar do PT era sempre lançar candidato, nas disputas da Câmara, com candidato de oposição. Que regra o partido rompia? A de que quem vai para perder não deve disputar.
Valor: Por que, então, o PT lançava candidatos?
Delgado: Porque o partido achava que uma derrota aritmética não era política se serve para ofuscar a legitimidade de quem vai vencer e projetar o derrotado para o futuro. É isso que foi a candidatura do José Genoíno contra o Luiz Eduardo Magalhães (em 1995) e a do Aloízio Mercadante contra o Aécio Neves (em 2001).
Valor: Isso é diferente da candidatura avulsa?
Delgado: Totalmente. A avulsa é, fora da estrutura partidária, alguém se lançar na competição política aberta, na selvageria do plenário em fogo. Pode até vencer. A Bete Mendes (em 1985) fez isso para protestar contra o PT, refletindo a insatisfação do setor minoritário do PT que queria ir ao Colégio Eleitoral. Lançou-se contra a Irma Passoni como candidata avulsa para um cargo secundário da Mesa da Câmara e venceu no plenário. Foi a única vez em que o PT engoliu candidato avulso.
Valor: Qual é a atratividade desse modelo?
Delgado: O candidato avulso reflete um movimento conservador. Trata-se de um movimento geral contra os partidos e os políticos. Ele considera que os movimentos sociais, as ONGs, o Terceiro Setor, as organizações civis são mais fortes e representativas que a política partidária. O candidato avulso procura empolgar a maioria do parlamento sem ter limites e o constrangimento das instâncias e estruturas partidárias. É o poder sem responsabilidade, marca do individualismo narcisista moderno que tomou conta da política.
Valor: Mas esta não é a primeira vez em que há essa discussão sobre o “candidato do partido” e o “candidato do plenário”?
Delgado: Isso está ocorrendo no PT como crise, pois com 25 anos de existência e construído numa cultura de hierarquia, disciplina e de fidelidade partidária, o espaço do poder partidário está ficando muito pequeno e limitado para tantas estrelas. Mas, não há crime de opinião no PT. Ninguém é punido por ter opinião. O centro da nossa força é a unidade de ação. Tomada a decisão, todos têm que segui-la. É a primeira vez que se tenciona o partido para depois da sua decisão. Há múltiplos interesses políticos que não convergem mais para os partidos atuais. O parlamento reflete isso e a luta interna por espaço e reconhecimento estimula sua desinstitucionalização.
Valor: Quando isso acontece?
Delgado: Por exemplo, quando os partidos procuram personalidades para suas chapas de candidatos. Na verdade, estão atrás de candidatos avulsos. Procuram setores sociais que tenham representatividade própria para aumentar a força eleitoral do partido e, assim, dão destaque ao princípio do voto na pessoa. Sempre houve uma tensão entre essa expansão horizontal de direitos democráticos e de cidadania, que é uma característica da sociedade civil, e o centralismo dos partidos políticos. Na política partidária, todos estão sujeitos a decisões coletivas e à unidade de ação, se o partido funcionar. A morte de um partido é a perda de unidade de ação. Se o PT aceitar isso, vamos virar um “grêmio recreativo Unidos do PT”.
“Sem maioria no Congresso, tivemos que fazer composições que produziram uma base instável”
Valor: Isso aconteceu porque o PT chegou ao poder?
Delgado: É um pouco da crise geral da representatividade política. O fator de estabilidade do governo não contém símbolos de mudança que imaginamos seriam o elemento essencial da ação parlamentar do partido. O eleitorado nos deu uma ampla votação majoritária para Presidente da República, mas a essa votação não correspondeu uma votação majoritária para a composição do Congresso. Tivemos que fazer composições pós-eleitorais. Isso acabou produzindo uma base instável. Esse fenômeno sempre ocorrerá enquanto não existirem partidos políticos sólidos e organizados verticalmente, com disciplina e com organização interna formal, rígida, e também com o voto partidário predominando sobre o individual. Sem isso, qualquer governo progressista no Brasil estará sujeito a ter como fator de estabilização um Congresso conservador. O candidato avulso reforça o caráter conservador da base do governo. Por isso, o sistema de arregimentação de apoios para o candidato avulso não é o sistema partidário. São os micro-interesses políticos individuais, pessoais, regionais ou de grupos. É um retrocesso.
Valor: O crepúsculo dos partidos, então, não é de agora. A novidade é o PT?
Delgado: Na verdade, nunca houve uma estrutura partidária sólida no Brasil. Sempre estiveram em discussão as decisões coletivas originadas de direções partidárias. A deslegitimação destas decisões é a regra, pois, de uma maneira geral, a base dos partidos, e os líderes em ascensão, por força eleitoral ou manobras intralegenda, vêem como usurpação a força dos líderes tradicionais. Isso se agravou agora que somos governo. Um fenômeno que vem dos anos 90 é também a “judicialização” das disputas políticas. Quem perde no partido recorre à Justiça. Outro fator é a desinstitucionalização dos partidos políticos, com o crescimento dos mandatos individuais, dos gabinetes parlamentares, da criação de oligarquias personalistas. Esse fenômeno começa a atingir também o PT. Em algumas regiões, o chamado coletivo do mandato de um deputado, vereador, ou deputado estadual é muito mais forte. Tem mais estrutura do que a própria direção partidária local. Isso, que era regra nos partidos conservadores, se torna normal num partido progressista de esquerda. Há hoje um sistema de produção de líderes, nos partidos, em torno do conflito de personalidades partidárias e não no de opiniões e idéias. Os partidos políticos estão se tornando partidos dos políticos.
Valor: O movimento “Câmara Forte” não é reflexo da insatisfação dos partidos com o PT?
Delgado: O movimento tem poucas zonas de vitalidade democrática. Na verdade, é um contra-movimento, solução equivocada para um diagnóstico certo. Reação à forma, por exemplo, como (o PT) produziu a maioria no Congresso. Estimulou-se a infidelidade partidária nos outros partidos, não se cumpriram acordos, imaginou-se que a agenda e o padrão do comportamento parlamentar são sempre negativos, o que não é verdade.
Valor: Essa percepção, alimentada pelo PT, está errada?
Delgado: Todas as vezes que os governos exortaram o parlamento para atitudes progressistas, ele sempre contribuiu. Nunca vi o Congresso brasileiro negar à União, ao Judiciário, à sociedade brasileira, a força progressista quando houve uma pressão para que produzisse mudanças na sociedade. Ou seja, o gene do fisiologismo no parlamento é recessivo, quem o faz dominante são os governos. Se você estimula a negociação um a um, o varejo parlamentar, produz uma compreensão equivocada do que se considera uma ação política positiva.
Valor: O PT repetiu os governos anteriores?
Delgado: É. De certa maneira, ao estimular ou não se opor à mudança de partido para construir a nossa base, violamos a maioria parlamentar originada das urnas. Fizemos partidos que tiveram mais votos terem menos deputados e aqueles que tiveram menos votos terem mais deputados.
Valor: Quantas mudanças o PT estimulou?
Delgado: Estimuladas ou não, ocorreram, pelo menos, 130 mudanças. E, dessas, 30 mudaram mais de uma vez. Nesse processo de instabilidade construída para produzir maioria, começou a haver a manipulação dessa instabilidade da base para construir articulações vantajosas na negociação com o governo. O infiel é dono de mandato avulso e reflete a crise da política como instituição. Um outro fator que tem levado a isso é o adiamento permanente da reforma política. É visível que ela não é prioritária.
Valor: O que a reforma poderia fazer?
Delgado: Primeiro, dar estabilidade às posições majoritárias através do respeito ao resultado eleitoral, produzindo maiorias acordadas na campanha ou depois, por meio de acordos partidários formais. Tem que se introduzir na reforma política o princípio da fidelidade partidária. Acho, inclusive, que não precisa ser obrigatório.
Valor: Por quê?
Delgado: Os partidos teriam o direito de dizer, no seu estatuto e no seu programa, que se organizam com fidelidade partidária. O eleitor escolhe. O mandato pertencerá ao partido se este assim o desejar. O PT certamente vai colocar isto no seu programa. O PFL e o PSDB também colocarão. Talvez, o PMDB não coloque.
“O gene do fisiologismo no parlamento é recessivo, quem o faz dominante são os governos”
Valor: Por que não?
Delgado: Talvez não interesse a um partido que teve origem em frentes políticas, como o PMDB, a fidelidade partidária. Aproveitando o plebiscito deste ano do desarmamento e para que não se faça uma consulta sobre uma questão só, apresentei um projeto de decreto legislativo, introduzindo no plebiscito a consulta sobre a reforma política. Se vier uma força de fora para dentro, o Congresso vai ser obrigado a fazer a reforma política.
Valor: Que temas serão levados à consulta?
Delgado: O voto em lista pré-ordenada, ou seja, o voto partidário, a fidelidade e o financiamento público de campanha.
Valor: O governo tem algum interesse em fazer a reforma política?
Delgado: Se tem compromisso com a mudança de costumes, ele tem a obrigação de estimulá-la. A influência da estabilidade política na estabilidade e no crescimento econômico brasileiro é visível.
Valor: Isso já ocorreu no Brasil?
Delgado: Nos dois anos do governo Itamar Franco, que foi politicamente o mais estável dos governos brasileiros dos últimos anos. Houve praticamente uma união nacional para sustentar o governo por causa da crise que deu origem a ele. Aqueles foram os dois anos (1993 e 1994) de maior crescimento econômico do Brasil nos últimos 20 anos.
Valor: Mas, o PT não apoiou o Itamar.
Delgado: Exatamente. Comportou-se como partido avulso. O PT já naquela época não compreendeu o papel da estabilidade política para o crescimento econômico. Agora, sente necessidade disso. Desde aquela época, sou crítico desse voluntarismo petista, que ainda nos persegue.
Valor: Em que medida a candidatura Greenhalgh não representa também a candidatura de uma personalidade?
Delgado: O bom candidato é alguém que tenha idéias, em geral, de interesse coletivo e que seja sustentado por uma estrutura partidária, em que se possa cobrar dele como pessoa jurídica e não como pessoa física. O Greenhalgh é resultado de uma decisão coletiva. Ele é uma pessoa de biografia extra-parlamentar. Talvez, seja esse um dos fatores da turbulência no início de sua candidatura. Ele chegou ao parlamento conhecido. Não é um político de carreira. O segundo problema são os problemas de convivência.
Valor: Em que sentido?
Delgado: Os problemas de convivência política não podem ser derivados do estatuto de um clube social. O Congresso não é uma organização familiar. Florestan Fernandes e Roberto Campos, duas personalidades que honraram o parlamento brasileiro, também não eram pessoas de cumprimento fácil. Mas é um orgulho de qualquer parlamento ter essas duas personalidades. Há pessoas mais afáveis, gentis e que, no entanto, tem pouca contribuição para a história do parlamento. Como o debate está em cima de pessoas, o projeto, as propostas e as regras que conduzem o comportamento de um presidente da Câmara viraram matéria sem valor real. O que está em discussão é o secundário do secundário como se a Câmara fosse um clube de deputados, a “casa nossa”.
Valor: Uma crítica que se fez nos últimos dois anos foi a relação íntima entre a presidência da Câmara e a presidência da República.
Delgado: Uma Câmara forte, razoável e respeitada livra o governo da perfeição. Nenhum governo deve pretender ser perfeito. O governo tem que ser justo e bom o suficiente. Podemos ter uma ação parlamentar tão ativa que possamos, com isso, melhorar a qualidade das leis originadas no Executivo. Nesse ponto, o que pode ser uma evolução entre o período do João Paulo e o próximo período é que vamos requalificar a relação entre governo e Câmara, de tal forma que possamos encontrar entre os deputados iniciativas que desestimulem o governo a editar medidas provisórias. O que falta é o parlamento, em vez de reagir às MPs, agir para construir uma alternativa a elas e, aí, se for o caso, devolvendo ao governo aquelas que por falta de relevância e urgência não precisem ser votadas ou porque temos iniciativas legislativas que com urgência urgentíssima podemos aprovar tão rápido quanto uma medida provisória.