Código Servil
O GLOBO, Terça-feira, 9 de dezembro de 1997. Opinião .7
O novo Código Civil traz importantes mudanças para a vida do brasileiro, muitas delas já incorporadas de fato à sociedade e à jurisprudência. É uma atualização necessária e inadiável de uma lei vigente há mais de 80 anos. Desde1917, e após 22 anos de tramitação no Congresso, a lei leva tempo para se consolidar.
Ao buscar adequar a lei aos novos ares da civilização e da cultura, o novo Código é um avanço. Corrige distorções e injustiças há muito reclamadas no direito da família. Define o pátrio poder como aquele exercido por quem cria, e, nesse aspecto, se aproxima da nossa realidade, pois o pai, no Brasil, é a mãe. Na questão de gênero o texto vai mais além. Substitui o termo “homem”, como detentor de direitos e deveres, por “ser humano”, ainda que quatro anos após a Conferência de Viena, a maior reunião mundial sobre direitos humanos, onde o Brasil defendeu esta atualização.
Tem fim também a figura do filho ilegítimo ou adotado. Todos os filhos são iguais, independentemente da união que lhes deu origem, e os adotivos passam a ter os mesmos direitos. Filhos concebidos por inseminação artificial também já são reconhecidos. Ao definir como aceitáveis a doação de órgãos para transplante e fins científicos, e a elaboração de testamento por meios eletrônicos ou em aeronaves, o texto reforça sua adaptação aos avanços da tecnologia. Mas faz concessão deslumbrada ao modernismo sem critério. O meio eletrônico torna impessoal o documento e pode permitir, ao beneficiário, interferir na elaboração do testamento, fraudando a vontade de seu autor. Este dispositivo destrói o documento escrito e, faz com a autoria, o que a informática não conseguiu fazer com a literatura: destruir o livro. Ao Senado, que não leu Ítalo Calvino, passou despercebido que este é o século do livro, da palavra escrita.
Novos conceitos e prazos estabelecidos no direito de propriedade certamente serão fundamentais nas lutas sociais pelas reformas agrária e urbana, como o usucapião, reduzido para três anos. A “função social” deixa de ser atributo exclusivo da propriedade rural. E finalidades econômicas e sociais, e a preservação do equilíbrio ecológico, passam a fazer parte do exercício do direito de propriedade.
A indenização por danos morais, claramente definida nos dispositivos do código modernizado, e a revisão de contratos em caso de desequilíbrio gritante contra uma das partes, revelam a sensibilidade do legislador brasileiro. Lembramos, ainda, do dever que ex-cônjuges ou ex-companheiros, de qualquer gênero, passam a ter de prestar assistência àqueles que não têm meios para a sobrevivência.
No entanto, há uma medida que consideramos ser um descuido do legislador. Imaginar que o discurso sobre a antecipação da maioridade significa que o mundo está evoluindo para uma posição positiva. Na verdade, quando uma criança vira pré-adolescente, ou um adolescente vira adulto antes da hora, por causa das vicissitudes e dificuldades da vida, isso é um contra-sensor e vai na contramão do que deve ser o progresso da Humanidade.
Nem tudo o que se torna característico ou distorção na vida social deve virar lei. A lei tem dois lados, complementares. Ao mesmo tempo que deve acompanhar a evolução dos costumes, ela também tem que deter atualizações inconvenientes. A apropriação, por crianças, jovens e adolescentes, de situações características da vida adulta – como dirigir carros, iniciar a vida sexual mecanicamente ou utilizar álcool e drogas – tem transformado as conseqüências deste mau uso em graves problemas sociais, educacionais e de saúde pública no Brasil: gravidez na adolescência, prostituição infantil, uso alarmante de drogas legais, sexo virtual etc. Pesquisas como a recentemente divulgada pelo IBGE/Unicef, dando conta de que os jovens brasileiros estão morrendo violentamente mais do que há dez anos, bem como se drogando e sem atividades orientadas, deveriam alertar os legisladores e a sociedade. Permitir a um jovem de 18 anos tornar-se um adulto é tornar lei uma indiferença social; jamais um avanço.
Não há escapatória: quem decide ter filhos, criá-los e torná-los homens e mulheres razoáveis, agradáveis, íntegros e honrados, tem que ter responsabilidade sobre eles; filho não é bezerro, nem pinto. Ao querer livrar-se da menoridade dos seus filhos antes do tempo – e este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, acontece em vários países do mundo – pais e mães, mas principalmente os legisladores, estão evitando ver que a evolução dos costumes deve também ser controlada, quando passa a significar riscos à integridade física e emocional de qualquer ser humano, especialmente jovens.
A modernidade irresponsável considera que a maioridade precoce permite abrir mão da responsabilidade sobre a guarda e a educação dos filhos, sejam eles crianças, jovens ou adolescentes. Um jovem antes dos 21 anos ainda não é biologicamente desenvolvido. A maturidade que se atribui a ele é, na verdade, produzida pelas distorções na sociedade impiedosa, violenta e sem solidariedade que predomina no mundo de hoje. Parece-nos que a regra atualmente em vigor, que deixa a emancipação de um jovem de 18 anos aos cuidados de seus pais ou tutores, ainda é a mais responsável. Quem cria uma criança ou jovem tem mais condições de avaliar sua maturidade. Nesse ritmo de modernização, certamente daqui a alguns anos meninos e meninas de 16, depois 14 anos, serão considerados adultos. Do ponto de vista do Estado, sem dúvida é uma boa forma de se responsabilizar por jovens e crianças que, no lugar de ocuparem um banco de escola, devem tratar de se virar como puderem. O Código Civil é a constituição do homem comum. A ele cada um se reporta para orientar as opções de sua vida pessoal. Livrar-se da educação de um jovem equivale a retirar, da Carta Magna brasileira, a proteção que ela dá à vida. É fazer um código servil a distorções do mundo moderno.
PAULO DELGADO é deputado federal pelo PT/MG.