A reinvenção do emprego
O Globo – 09 de março de 2008.
Qualquer trabalho lícito, ofício, ou profissão, e seu produto, material ou imaterial, pode ser desenvolvido, proposto ou contratado mediante retribuição. É a autonomia da vontade que deveria assegurar o livre exercício de qualquer atividade econômica cabendo à lei, protegendo as partes, deslumbrar-se com a possibilidade de sua superação inevitável.
Trabalho, tão antigo como o homem no mundo, é habilidade, saber fazer, mudança constante. Emprego, criação do Estado na era industrial, é contrato, saber servir, estabilidade. O descompasso crescente entre a realidade de um e de outro se agrava quando queremos disciplinar e regulamentar o trabalho vendo-o, sempre, como emprego. Sem atentar para o surgimento novos tipos de trabalhadores, locais de trabalho, alguns virtuais, hierarquias horizontais, rede complexas como cachos, incontida difusão tecnológica, serviços e arranjos produtivos inesperados, mercados e consumidores insaciáveis por todo o mundo.
Desemprego e informalidade são as principais conseqüências desse conflito entre a realidade e a lei. Criatividade, especialização, liberdade, desejo de não ter padrão, terceirização, invenção, patentes, copyrights, trabalho em casa, temporário, cooperativas, teletrabalho. Um mundo sem fim de trabalhadores idôneos, profissionais e empresas, tendo que se ajustar a vultuosa e vetusta Consolidação das Leis do Emprego – grafada erroneamente como leis do trabalho – e seus derivados legais no Código Civil, nas receitas federais, previdenciárias, municipal, estadual, em súmulas, portarias, enunciados, procuradores, autuações, ajustes de conduta, às vezes ajuste de conta. A tradição negativa da lei, centrada na transgressão e no erro que alimenta o delírio persecutório do Estado, não gera empregos e seus direitos instantâneos. É o desenvolvimento econômico, a qualificação crescente da mão-de-obra, níveis elevados da educação, livre circulação do trabalho – protegidos por contratos civis, regulação independente por setores de atividade – patamares razoáveis de tribulação, que descriminalizam as relações de emprego, permitindo vislumbrar e aumentar a formalidade.
A busca do trabalho sem emprego deve gerar novo modelo institucional protegido, mas não tutelado. A assinatura da carteira, subordinação. A pessoalidade, a remuneração vigiada nem sempre asseguram a não-precariedade do trabalho. A autonomia para formulação de novas formas de contrato – a autêntica cidadania trabalhista – abre novos horizontes de emprego, territórios legais de adesão e evasão voluntária livre, mantidos os fundos de garantia por tempo de serviço.
Todas as conquistas que se alcançaram no mundo em nosso país, derivadas dos movimentos reivindicatórios de trabalhadores e patronais podem e devem sempre melhorar. O avanço da legislação do Estado sobre direitos sociais e trabalhistas criou direito protegido. A modernização subjacente aos princípios da responsabilidade social das empresas, sistemas de certificação de excelência, normas de segurança e de saúde no trabalho vieram para ficar. Nada disso pode correr o risco de se perder diante da lei de ferro que circunda o modelo atual de contratação, inflexível ante a licitude, desconhecida pela lei, do oceano das modalidades de trabalho.
Limitado em sua expansão, engessado pelo temor da legalidade, o mercado de trabalho divide-se em legal e clandestino, multado ou informal, vigiado mais pela faceta policial do que fiscalizadora do Estado. O que deságua nos mais de dois milhões de conflitos trabalhistas em curso nos tribunais brasileiros. A legislação não atualizada torna precária as atividades que pensa proteger. Não assegura emprego, não cria trabalho.
Paulo Delgado é sociólogo e foi deputado federal pelo PT de Minas Gerais.