O Governo e a sociedade civil
Roma, 11 e 12 de março de 2004
Conferência Idee e Forzee Progressiste in America Latina e in Europa
No Brasil o modelo de democracia e de participação social tem que considerar o fato de que a história do nosso país não começou no momento em que chegamos ao poder. Esse elemento é essencial porque, se imaginássemos que a política só se faz com atores de esquerda, estaríamos, em realidade, condenando um povo que, no passado, não votou na esquerda. Temos que ter a humildade de reconhecer que a história foi feita também pela direita, sem dúvida não da maneira que nós desejamos, porém nas condições objetivas do nosso país.
Por outra parte, é importante pôr em evidência que, embora os movimentos sociais e as organizações não governamentais influenciem a elaboração da agenda política latino-americana, é através da democracia representativa que se institucionalizam as mudanças na sociedade. A idéia de que através do governo se exercita todo o poder é uma idéia arriscada, seja para a América Latina, seja para o resto do mundo. A democracia representativa deve saber se renovar permanentemente na sua relação com os movimentos sociais e com a democracia direta: essa é a nossa experiência, no Brasil, no governo das municipalidades e dos Estados. Agora estamos tentando levar essa experiência ao governo nacional. A elaboração da lei financeira, por exemplo, ocorre com uma ampla consulta e participação popular e posso assegurar que não é fácil construir um sistema participativo num país como o Brasil, que tem 170 milhões de habitantes.
Outra importante questão a se considerar diz respeito ao fato de que as forças políticas devem alcançar determinada porcentagem eleitoral para poder entrar no sistema nacional: só assim é possível afrontar aquele paternalismo latino-americano que concede representação política a quem não tem a representação social. Esse é o maior obstáculo ao sistema democrático. E é também uma característica da esquerda na qual, às vezes, não ganha quem tem mais votos, mas quem grita mais forte. Na América Latina temos um sistema caracterizado por altos decibéis ideológicos e pouca presença social. O sistema multipartidário latino-americano vê a existência de quase 200 partidos com um único representante parlamentar nos Parlamentos nacionais. Essa fragmentação política torna o sistema político pouco eficaz e a população percebe que o representante do povo é, em realidade, o representante de si mesmo. Procuramos fazer uma reforma política no Brasil, respeitando os direitos da minoria no Parlamento, porém assegurando também o respeito da maioria que preserva a estabilidade dos governos eleitos. Então, se deverá se respeitar os governos eleitos e a maioria que os pôs no poder e, ao mesmo tempo, respeitar os direitos da minoria, estimulando a associação com outras minorias para que as alianças políticas possam substituir a fragmentação dos partidos uninominais ou dos partidos sem voto, como ocorre muitas vezes no Brasil.
Outro aspecto que não pode ser subestimado diz respeito à integração física latino-americana. O Brasil é um país que tem 17.000 quilômetros de fronteiras na América Latina e faz divisa com dez países. É o país que tem mais fronteiras na América Latina. É inútil construir a integração política latino-americana se essa integração não é física também. Hoje temos situações absurdas como a falta de conexões aéreas: é necessário passar por Miami para ir do Brasil até o Equador porque não há nenhuma integração amazônica. O sistema de vigilância da Amazônia brasileira precisa da ajuda européia para se desenvolver. Somos um país maior do que a soma dos países europeus e não temos o controle sobre nossas estações orbitais, pois o sistema das Nações Unidas criou esse sistema no começo da guerra fria e até hoje não o modificou. Isso não é admissível. Quanto à relação com os Estados Unidos, acredito que seja importante a relação com a esquerda norte-americana e com os representantes dessa complexa sociedade, muito bem retratada pelo cinema, pela literatura e pela cultura em geral. Os Estados Unidos são capazes de fazer muito mal, mas também de fazer a melhor crítica do mal. É o país que fará o melhor filme contra a guerra no Iraque. Posto que estou no país de Franco Basaglia, que de entendia muito “desmanicomização”, diria que no tocante ao mal temos que “desmanicomizar” a visão dos Estados Unidos, pois é um país com uma população extraordinária. Todas as coisas, boas ou más, ocorridas no século XX tiveram alguma relação com os Estados Unidos. Por isso é importante dialogar com a esquerda norte-americana com o objetivo de reduzir nossas áreas de atrito.
Além disso, acredito que a América Latina deve criar um esperanto, falar em “portunhol” como uma língua única que inclua o português nos países de língua espanhola e o espanhol no Brasil. Devemos criar uma língua latina que junto ao italiano e ao francês (a Europa latina) constitua uma corrente cultural como América Latina. Acredito que o povo brasileiro é tanto italiano quanto português ou francês, e pela primeira vez, com Lula, chega no governo do Brasil uma pessoa que se parece com seu povo, que desperta essa necessidade de integração. Não podemos falhar e, por isso, temos que aumentar os vínculos que nos unem. A esquerda tem que ser um pouco mais moderada nos discursos na América Latina, pois a maioria do nosso povo não confia nos partidos políticos. Sempre há dois demônios na América Latina: o demônio de farda e o demônio em traje civil, o militarismo e o populismo. Se conseguirmos afastar esses dois demônios, tenho certeza de que poderemos nos integrar no mundo sem nos desintegrar como sociedade.
Os programas de desenvolvimento, de inclusão social e de cidadania do governo do Brasil se fundamentam sobre os princípios do PT. Pode-se enumerá-los de forma esquemática: Primeiro, democratização : quanto mais crise, mais democracia. Essa é a primeira fórmula que o PT propôs aos irmãos da América Latina e aos partidos de esquerda e de centro-esquerda do Brasil.
Segundo, participação : quanto mais problemas e dificuldades, maior inclusão social. Não demonizar os problemas sociais e enfrentá-los com políticas locais e nacionais definidas, e com ampla participação e mobilização social. No Brasil não é possível pensar em cidadania, desenvolvimento e inclusão social sem parcerias, como, por exemplo, a Igreja. A igreja católica e as igrejas protestantes brasileiras, dada a forte religiosidade do povo brasileiro, sempre estiveram presentes em muitos programas sociais. As primeiras certidões de nascimento dos brasileiros, de casamento e de morte, foram feitas pela Igreja até o começo do século XX. As mais antigas famílias brasileiras, mais tradicionais, ainda têm suas certidões na Igreja. A sociedade civil é um elemento fundamental das políticas de desenvolvimento. O Fórum Social Mundial, representativo dessa diversidade de organizações da sociedade, nasceu como fruto da mobilização que o PT e outros partidos de esquerda, do mundo e da América Latina, desenvolveram junto com a sociedade civil. Dessa maneira, compreendeu-se que era necessário um confronto e uma oposição ao Fórum Econômico Mundial. O Fórum de São Paulo também nasceu de uma iniciativa do PT, para reunir os partidos de esquerda da América Latina e constituir uma instância de debate e de criação de consenso. Trata-se de uma experiência inédita na América Latina. Já estamos na décimo terceira edição, e seguimos reunindo mais de 50 partidos e organizações políticas latino-americanas, estimulando os percursos democráticos, com a inclusão de forças políticas provenientes de matrizes ideológicas e de práticas políticas diferentes.
Terceiro, universalização , e construção de idéias que sejam nacionais. Por exemplo, a luta contra os crimes bárbaros e abjetos no Brasil é de responsabilidade do poder federal. Essa decisão, anterior ao governo do PT, nos permite observar que, na história do Brasil, existe uma evolução em direção ao sistema do centro, do centro-esquerda e da esquerda no que diz respeito às políticas dos direitos humanos. O governo anterior (liderado por Fernando Henrique Cardoso, ndr) teve um papel importante na evolução do Brasil, na direção de um clima de diálogo e de respeito aos valores universais. O seu fracasso é devido a uma política de privatizações que enfraqueceu muito o Estado, talvez também porque, paradoxalmente, não realizou o ponto principal do programa social-democrático do presidente Cardoso: implantar o parlamentarismo.
O presidente Lula introduziu a idéia de que a pobreza é um problema nacional e que é preciso se envergonhar de ser pobre num país rico. O Brasil é um país injusto porque é um país rico capaz de dar dignidade a todo seu povo, mas tem problemas antigos agravados por problemas de distribuição de renda. O Brasil não é um país “pobre”, é um país que tem uma classe pobre por causa da pobreza da política brasileira. Por isso o governo Lula não teve medo de propor, em Cancun, a formação de uma aliança de países, conhecida como G20, e de propor também uma união para reabrir a política internacional no Sul do mundo, como fez Vasco da Gama, no Renascimento. Não faz sentido, e me desculpem se ouso dizê-lo, que para ir à África do Sul ou à Ásia temos que passar pela Europa ou pelos Estados Unidos. Faltam as conexões sul-sul, pois nunca houve políticas exteriores ou comerciais centradas naquele eixo. Foi a diplomacia do presidente Lula que deu uma nova dimensão a esses parceiros brasileiros: América Latina, China, Índia, África. Não temos a ilusão de criar um espécie de “Tratado do Atlântico do Sul”, uma nova NATO. Não é isso o que queremos: somos pacifistas e acreditamos que seja possível resolver os problemas do mundo de forma pacífica. Precisamos da ajuda da Europa para que o Banco Mundial e o FMI nos permitam eliminar da dívida latino-americana os investimentos em infraestruturas e desenvolvimento, assim como aqueles em programas sociais e de inclusão social. Esse é um problema concreto da América Latina.
Nosso programa social chamado “Bolsa Família” é uma filiação do Programa “Fome Zero”. Um grande sociólogo brasileiro, Herbert de Souza (Betinho), criou o primeiro programa brasileiro de luta contra a fome, e naquela época, faz dez ou quinze anos, ele fazia parte do PT. Hoje ampliamos aquele programa e o chamamos de “Bolsa Família”. É um programa de inclusão social com o qual a família recebe uma ajuda estatal para procurar emprego naquelas atividades que o Estado incentiva através de parcerias com a iniciativa privada e com setores estatais. O Movimento Sem Terra , no Brasil, participa dos programas de inclusão através de suas cooperativas, ou diretamente com a produção familiar. No interior do programa “Bolsa Família”, a transferência da renda acontece incentivando a atividade escolar, porque a família recebe a ajuda se coloca os filhos na escola e segue seu roteiro escolar. Por isso, é também um programa de escolarização, que evoluiu dos sistemas religiosos e de solidariedade religiosa para os programas de inclusão social, de solidariedade cidadã, de ampliação dos direitos civis dos pobres, de legalização das pessoas no sistema nacional. Além disso, criamos um sistema de crédito comunitário, no qual não é apenas o indivíduo que procura recursos, mas o cidadão que entra no sistema bancário. As comunidades, os sindicatos, as organizações religiosas, os movimentos sociais institucionalizados podem conceder crédito a um cidadão que se encontra numa situação de emergência. Não podemos permitir que um bairro pobre se torne ainda mais pobre porque, ao contrário, seria colonizado pelo sistema da criminalidade. Em outras palavras, o programa consiste em aumentar a solidariedade entre os iguais, para que os iguais possam ser diferentes, mas as diferenças intoleráveis sejam combatidas por leis capazes de aumentar as vantagens de quem se encontra em situações de desvantagem.
O “Programa Fome Zero”, por exemplo, escolheu as quatro cidades brasileiras mais pobres do país, duas no Estado do Piauí (o Estado brasileiro mais pobre, no Norte do Brasil) e duas no Estado do Rio Grande do Norte (o segundo Estado mais pobre). Em um ano conseguimos tirar as crianças da rua. No ano passado, com um só ano de programa, obtivemos o resultado da taxa de mortalidade zero nessas quatro cidades. No interior desse programa também nasceu a idéia de aumentar os direitos dos idosos. Acabamos de aprovar o estatuto dos idosos no Brasil, baixando a idade de 70 para 65 anos. Nós temos que fazer um roteiro diferente daquele que vocês fazem na Europa: na Europa a idade precisa ser aumentada, pois vocês têm maior expectativa de vida, mas em regiões marcadas pela pobreza e pela miséria, a idade precisa ser baixada, para que o maior número possível de pessoas possam usufruir do desenvolvimento social. Já conseguimos fazer com que os idosos com mais de 65 anos não paguem o transporte coletivo, público ou privado, e estamos alargando esse direito ao transporte interestadual, de um Estado para outro. As empresas têm a obrigação de guardar cadeiras nos ônibus para os idosos que queiram viajar de uma cidade para outra. O nosso maior problema, hoje, é aumentar os programas de inclusão social, pois existe uma competição política entre os quase cinco mil e quinhentos municípios do Brasil (dos 27 estados) e o poder federal. A constituição prescreve a descentralização no exercício do poder. Porém, os pobres no Brasil geralmente se tornam “propriedade” de prefeitos, que os utilizam como reservatório e instrumento eleitoral. Existe um conflito, hoje, entre nosso governo, que individua na miséria e na pobreza uma emergência nacional, e aqueles que exploram esses dramas humanos para a luta política local, como instrumento de pressão sobre o governo nacional para obter mais fundos.
No meio dessa forte relação dialética com a sociedade civil, com os sindicatos e com a Igreja, tentamos levar à frente ações estruturais. Com os Bancos privados o governo criou algumas compensações fiscais e tributárias para as organizações sociais, e ao sistema bancário brasileiro fez-se o apelo para ajudar a desenvolver políticas públicas nas regiões do Nordeste brasileiro, sobretudo para fornecer água potável disponível em cisternas, poços artesianos, etc. Trata-se de promover uma relação diferente do sistema bancário com o cidadão que já não é visto como um simples elemento de expropriação de créditos.
No que diz respeito à questão da saúde mental, um dos programas mais importantes do Brasil nasceu aqui, na Itália, com Franco Basaglia (Lei 180), e eu tive a honra de ser o autor de uma lei de “desmanicomização” no Brasil. Esse projeto de lei foi bloqueado no parlamento brasileiro por mais de 10 anos e a lei foi aprovada somente há dois anos atrás. Pela primeira vez no Brasil, estamos oferecendo assistência psicológica aos pobres: as pessoas podem receber uma ajuda para a reabilitação psicossocial e, através desse objetivo, estamos ampliando a rede de hospitais psiquiátricos, pois um dos problemas decorrente do fechamento dos manicômios é a falta de um serviço alternativo. Temos que evitar que a loucura seja novamente uma questão privada da família e que não exista uma alternativa ao fechamento dos manicômios, pois a loucura existe e é um problema real. Hoje no Brasil temos mais de 300 estruturas de apoio, e elas estão abertas noite e dia.
Muito bem, gostaria de observar que, no que diz respeito às políticas alternativas e afirmativas, o governo do Presidente Lula dispõe de uma Secretaria de gênero para as mulheres vinculada à Presidência da República, assim como uma Secretaria para a igualdade racial, também vinculada à Presidência da República. Ampliamos a autonomia dos índios nas suas terras, respeitando o princípio de direito natural originário e ampliando em milhões de hectares as terras indígenas da Amazônia. Ou seja, para poder desenvolver a cidadania e os direitos políticos no Brasil, precisamos que os países desenvolvidos olhem para a América Latina de outra forma.
Pela grande capacidade de produzir políticas públicas e de criar programas alternativos para enfrentar os problemas sociais, a América Latina merece a solidariedade dos países desenvolvidos. Em especial, o apoio para modernizar o sistema das Nações Unidas e suas políticas. O apoio à idéia, que vem do movimento do Attac, de introduzir a Tobin Tax , por exemplo. Essas novas idéias deveriam ter uma circulação internacional e traduzir-se em leis e normas. Por exemplo, deveria existir algum tipo de taxação sobre a circulação do capital especulativo no mundo. E não seria o Brasil quem tiraria os melhores proveitos, senão a África! Isso melhoraria os problemas dos extracomunitários na Europa, pois diminuiria a pobreza dos países pobres melhoraria a dignidade da riqueza dos ricos.
Para terminar, renovo o meu agradecimento. Estou satisfeito por estar aqui, hoje, nessa conferência dos Democráticos de Esquerda, porque percebo na esquerda italiana e européia essa vontade de aliança com a América Latina, vista como parceira no processo de desenvolvimento. Tenho muita confiança nesse diálogo e estou honrado por ter sido convidado para representar o PT nesse evento.