MEDICINA, DIREITO E SOFRIMENTO
O Globo, 4 de Abril de 2016.
Direito só existe se ainda há vida para se manifestar. Amanhã faz 15 anos que entrou em vigor o novo modelo de atenção aos portadores de sofrimento mental. Mas o principal inimigo jurídico da reforma psiquiátrica continua vivo e atuante. Quando o poder médico toma a vida como objeto, de pouco vale querer falar a língua do direito.
Há algum tempo o mundo vem dispensando o trabalho dos intelectuais e das grandes personalidades independentes na análise dos problemas humanos. Misturado no debate sobre a era dos direitos específicos – corpo, território, gênero, saúde, raça, felicidade, fé, idade, necessidades, classe, etc – o estatuto dos valores universais naufragou na esquina da transversalidade, dos interesses profissionais e dos pequenos aparatos de poder. Foi deixando de fora os grandes formuladores, a singularidade do sujeito livre, substituído pelo especialista, o notável do gueto. E a maior vítima desse ambiente sufocante é o louco de todo gênero, como era chamado o esquisito, qualquer pessoa que se comporte de maneira incomum, doente ou não.
Na psiquiatria tradicional tal fenômeno é uma doença. Que contaminou a universidade e os currículos de medicina de tal forma que impede o redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental. Assim, sempre pela metade, a reforma não caminha para o triunfo do papel social da medicina; para a implantação de uma política de economia solidária; para dar condições ao portador de distúrbios mentais de se reintegrar à vida social e ao mundo da produtividade, segundo sua possibilidade e capacidade.
Tentando sempre impor uma evolução negativa ao cotidiano de serviços compartilhados entre profissionais de saúde, familiares e pacientes, estabelecidos pela lei 10.2016 de 6 de abril de 2001, a psiquiatria de interdição trata a doença mental como contagiosa, exigindo isolamento, inimiga do tratamento em liberdade. Com isso reforça o preconceito contra o paciente associando sua doença a condutas de fracasso e incapacidade para o trabalho. É essa concepção médica, que se entrega ao fato da mente poder, às vezes, embromar o cidadão analisado, que justifica sua desadaptação para a vida e a liberdade – e é a prática desse pensamento que chamamos manicômio.
Com a captura do jovem fissurado para o mundo da droga, misturada à miséria e ao desamparo, o problema da liberdade tornou-se mais complexo e turbulento. O que não justifica deslocar o tratamento do usuário da área da saúde e da assistência social para o lado da Justiça e do encarceramento. A potência que jovens revelam para a autodestruição, redirecionada por acolhimento que preserve direitos, é que poderá ajuda-los a conceber sua liberdade e a dar, ao ritmo diferente a que está submetida sua vida, um caminho de saída.
Fui o deputado dos loucos. Meus críticos preferiam deputado louco. Não carrego culpa retrospectiva. Temo pelo futuro. Sei que somente poucas e boas leis salvam o Brasil. No aniversário dessa lei espero que nenhum parlamentar peça ao governo um hospício para votar contra o impeachment.
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PAULO DELGADO é sociólogo e como deputado foi autor da reforma Psiquiátrica brasileira.