A Música Alta

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O Globo – 4 de setembro de 2017.

A música alta domina a parada sem que nenhuma Lava-Jato a detenha. Produz uma prostração das faculdades estéticas auditivas e descontrola a qualidade do som. Barulho sem fecundidade sua  paixão é se meter em tudo. Estranha afeição a determina: a de não deixar ninguém conversar. Um desregramento sonoro que não se interessa pelo ambiente em que explode. Nascida dos erros de todos os sons, violentos decibéis brotam de carros ridículos, enchem salas fechadas, ultrapassam o limite físico concreto.

Mais um defeito nacional confundido com liberdade, e avesso a todo o saber. Tirana do diálogo, a grosseria da música alta é o próprio egoísmo fora dos limites. Seus adeptos abusam covardemente da posição em que estão, no palco, em fuga, fechados em casa, como se uma disputa alimentasse tal tormento. Adora ouvinte subalterno, abusa do talento da maioria para a moderação. Masoquista que ama o sádico, sem juízo, vem em dose dupla quando é acompanhada da cretinice de alguma letra. Como sempre é de alguma forma contratada, é um desvario observar a devastação no rosto do operador dos berros, a quem se pede, com o tímpano espancado e a garganta esfolada, que tenha a misericórdia de abaixar o som.  Reclamar, e não sair, é ser vencido pelo mundo do abatimento diante do auditório cativo que pede mais barulho. Um apelo que logo vira zombaria e dolorosamente reduz ao seu limite conservador o não-músico, subjugado pela histeria moderna que suplanta a vagueza das afeições surgidas nos bailes cheios de dedo e acordes de piano.

Uma das infelicidades da música alta é a multidão de circunstâncias contidas no coração de quem a imagina música. Explicação que escapa a todas as esperanças.

Quem considera bom e agradável empurrar uma quantidade escandalosa de volume em ambiente fechado adora salva de canhão em cerimônia fúnebre. A habilidade daquela coisa desconcertante é a imposição variada de nenhuma nota musical por tanto tempo. Quem imagina estar submetido a ilusões artísticas, verá que se encontra inteiramente atacado pela mais completa intolerância à música.

O poder de privar as pessoas de saborear acordes que domina as festas atuais sugere algum tédio. Uma alegria pasteurizada que não precisa treinar o ouvido para decodificar o som que está a sua volta.  Músicas físicas, defeitos da paixão, impostas como desejos do coração.

A música alta conspira contra o tempo da formação involuntária, natural, tranquila, por etapas que leva a pessoa a perceber por si só o universal. Uma incultura fanática e febril, o regresso do animalzinho humano à vida dos animais. A deriva do desejo, delírio do ócio pelo absoluto do vazio. E nesse frenesi de empilhamento sem partitura a música barulhenta é um desvio de perspectiva. Uma vez abandonado o gosto pela música boa não há nenhuma esperança de retorno a ela, pois a condição essencial para alguém gostar do que é bom é achar isso natural. O mesmo se pode dizer que quem começa pela ruim, dificilmente chega à boa. Uma silenciosa adulação comercial para o mau gosto.

Alma não tem nada a ver com razão, mas música tem tudo a ver com audição. Ou não?  Ir mal e escapar impune não é um problema só de políticos.

 

PAULO DELGADO é Sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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