A aspereza da política
O Globo – 8 de agosto de 2011
O alto grau de inconveniências ministeriais produzidas no início do governo da primeira mulher presidente do Brasil não encontra explicações somente na política. Há uma linha que costura essa atmosfera de ferimentos autoprovocados e associa autoridades a comportamentos desonestos nos Transportes, desarrumadas explicações na Casa Civil e crispação no funeral sem luxo da boa gestão da Defesa.
Declarações, discursos, comícios e instintos diversos dão sempre a sensação aos políticos de que influenciam fortemente os acontecimentos. Iludidos com o princípio da elasticidade da almofada, caracterizado por manter a forma do último que se assentou sobre ela. Hábito contrário ao princípio da continuidade do regime presidencialista estável e transparente. E às boas normas da autoridade como bem disse nosso sexto presidente, Afonso Pena, ao seu opositor Rui Barbosa: “Na distribuição das pastas não me preocupei com a política, pois esta direção me cabe. Os ministros executam meu pensamento. Quem faz a política sou eu”.
Mas o que é mesmo fazer política? Há um sentimento de que é cada vez mais difícil imaginar a política institucional baseada em serenidade, probidade e força. Os elementos de dispersão, a dificuldade de produzir consensos, os limites artificiais entre governo e oposição e a constante atmosfera de desimportância para questões de longo prazo tornam o exercício do poder uma rotina extravagante. O fato da presidente não se interessar em pontificar no epicentro da política e todo o seu burburinho diário não é inércia ou indiferença à política. É que deveriam ser suficientes, para o bom desempenho administrativo, o poder e as prerrogativas da Presidência como instituição. Essa é uma postura e um tipo de singularidade pouco praticada no nosso presidencialismo. Reforçada pela tendência para analisar com ênfase, cuidado e prudência os prós e contras das decisões, revelam um temperamento. E não o desejo de negar o arranjo que a elegeu, como se vê pelo convite aos novos ministros: todos da base do governo. Lealdade sem subordinação é a boa prática. Mas quem se contenta em traduzir convicções em apoio ou votos estando com o apetite aceso? Difícil essa gastronomia eleitoral se ajustar ao estilo de uma autoridade que prefere reunir-se para tomar decisões do que para prolongados jantares de reivindicação.
Os esqueletos da política e suas mazelas não estão escondidos nos armários só do Estado. Mas pendurados por aí em inúmeros endereços públicos e privados. São cada vez maiores as pressões que o poder econômico, o sistema financeiro e os grandes fornecedores fazem sobre o Estado. Que, às vezes, para não sangrar decide não decidir em prejuízo do futuro. Nossa infraestrutura que o diga. Aqui, trens, aeroportos, estradas, pedágios, pontes, estádios de futebol, hidrelétricas, só funcionam na lógica superfaturada dos construtores. Aliados da destruição do panorama das cidades com seus prédios fora do tamanho e lugar: entupindo calçadas, esquinas, praças, ruas, parques – pressão constante para alterar códigos de posturas e avançar sobre o pedestre, árvores, lagoas e rios.
O espírito de grupo, com suas regras fechadas, está tirando o sono dos governos. A hegemonia brutal do sistema financeiro sobre a ordem mundial é a principal causa da desarmonia atual das coisas. A economia sempre foi o motor da ligação imperfeita entre a política e a sociedade, mas encontrava na política o freio às relações deletérias que as ambições de grupos privados queriam impor. Hoje é a política, e suas relações deletérias com grupos privados, o principal fator de desestabilização da vida social e econômica. A morte do liberalismo clássico, não o contrário, está na origem da crise econômica que arrasta a Europa em desrazão e os Estados Unidos em insensatez.
A aspereza da política não é fruto da sua natureza. Mas do convívio com diferentes concepções sobre seu uso e objetivos.
Paulo Delgado é sociólogo.