A decadência da mentira
ESTADO DE MINAS – Terça-feira, 18 de Fevereiro de 2003. Opinião.
PAULO DELGADO
Deputado federal (PT-MG), vice-presidente do Parlamento Latino-Americano
Oscar Wilde dizia que há somente duas tragédias no mundo: uma é não conseguir o que se deseja, a outra é conseguir. Quando um objetivo é atingido com esforço e perseverança, aí sim começam os verdadeiros desafios. São vários exemplos: o PCI na Itália, o PSOE na Espanha, o PS francês. Partidos que lutaram anos para chegar ao poder e vencer modelos vigentes. Junto com a transformação do sonho eleitoral em realidade, constataram que mudanças não ocorrem por simples desejo dos novos governantes. Todos foram acusados de traição pela retórica dos “puros” (chamados radicais entre nós). Todos melhoram a vida dos povos dos seus países. Vencer uma eleição, depois de tanto trabalho e dedicação, é quase um detalhe, apenas o início. O Partido precisa renovar sua coragem para governar. Ir além da distorção provocada pelo eleitoralismo brasileiro que não leva o homem público à humilhação da prova. A crítica do governo a partir da crítica da campanha revela o desprezo do crítico quanto a toda e qualquer tipo de prova. Afinal, o que é uma bela mentira, pergunta o admirável escritor inglês em uma de suas comédias teatrais. Simplesmente, aquilo que é prova de si mesmo. Se o indivíduo é desprovido de imaginação ao ponto de produzir evidências que sustente uma mentira é melhor que fale logo a verdade. Mentira em política é dar origem, por em movimento, o que quer que seja. Especialmente dizer que nada presta, nunca.
O PT vive hoje essa “tragicomédia” apontada por Wilde. Chegou ao poder com uma proposta efetiva de mudança, tem todas as condições de realizá-la, mas, com menos de dois meses de governo, enfrenta duras críticas vindas de dentro do próprio partido. Críticas que indicam falta de confiança nos seus membros, no programa e nos princípios partidários. Comentários que induzem a acreditar que existem hoje no partido os “puros” e os “sujos”, verdadeiros e mentirosos símbolos da mudança que representamos. É uma falsa “tragédia”, mentira eleitoral, tentativa de privatização da verdade: todos no PT querem mudar e estão prontos para a tarefa, mas modelos que se consolidaram durante décadas não se transformam do dia para a noite, pois não foram edificados com os pés de barro. Aceitemos ou não.
O presidente Lula, escolheu para comandar a economia alguém com passado de lutas, compromisso humanista, sólida experiência administrativa. Antônio Palocci, como chefe de executivo aprendeu que a idéia de ruptura pura, simples e imediata com o passado não funciona na prática. Como diz o ministro, comandante nenhum dá “cavalo de pau” em transatlântico. Isso significa abandonar um compromisso de vida ou trair princípios partidários? Significa render-se? É um pacto com o continuísmo? Claro que não. Significa entender que é preciso avançar sem deixar abertas lacunas rapidamente aproveitadas pelo retrocesso, impor a realidade sobre a propaganda, desvencilhar-se da propaganda.
Vejamos um exemplo prático, o sistema econômico mundial. É fácil pregar o rompimento curto e grosso, mas estamos falando de uma estrutura que fortaleceu-se de forma impressionante a partir da criação do Fundo Monetário Internacional no pós-guerra extrapolou os limites do mundo financeiro, passou a moldar inclusive a formação do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Um país pode desejar mudar isto tudo, mas só terá chances reais construindo a autonomia de seu próprio processo econômico. Convivendo com o passado que insiste em não passar, é preciso um pouco mais de prudência e sabedoria.
A paciência chinesa ensina que o importante num processo são os primeiros 1 mil anos. O Brasil não tem ainda mil anos para encontrar seu caminho. Estamos diante do desafio de solucionar efetivamente a perversa exclusão social, inserir o Brasil no mundo e não esperar para sermos inseridos. Não temos 1 mil anos de história, mas também ainda não temos 50 dias de governo.
Quem não ignorar essa realidade sabe que radical é a fome e que a decadência da mentira é obra coletiva de uma nação: o resto são as heranças do narcisismo político e partidário agravados pela novidade incompreensível para muitos que é a responsabilidade de ser governo, sem mistificação.