A ruína da linguagem

A ruína da linguagem

O Globo – 5 de Maio de 2014.

Do mundo que vem aí temos cada vez menos notícias. Ainda não apareceu com nitidez a plenitude psíquica dos tempos que vivemos. Ninguém pode prever com muita segurança o padrão cultural que está sendo criado e quais as possibilidades que oferece contra a regressão e o desespero. Ainda não se descobriu o estilo cênico e o palco certo para esta época nem nasceram a arte e o artista-testemunha deste tempo.
Quando a internet tornou-se o principal meio de comunicação e transformou-se em plataforma de linguagem universal e destacada forma de interação da sociedade, foi o talento para grosseria e equívocos que se expressou como explosão. Aos gênios nada acrescentou, dos estúpidos duplicou a estupidez.
Sem acesso à norma culta na defesa de seus interesses, opiniões e direitos elementares ou a identificando com sinistras situações de opressão a receptividade da violência na internet ocupou todas as áreas do cérebro onde a inteligência não consegue participar com predominância. Sobram exemplos de situações onde o suprimento das necessidades estéticas das massas se deu pela evasão para o mundo sem qualidade do entretenimento — assim como na política o desprezo pela estética favorece o ridículo da ética. Todos os nervos, dos que se revoltam ou não contra o dogmatismo do cenário geral, estão embrulhados na ruína da linguagem.
Como essa inconscientização cultural não se expressa artisticamente, preferindo todos se acomodarem aos problemas de ordem individual e seus guetos, não há atitudes a escolher nem personagens a admirar. Só que a linguagem quando está preocupada em expressar primeiramente seus slogans e clichês indica mais para fora de seu conteúdo e pode não significar nada. Mal indica um bloqueio, um fechamento. Não quer exprimir, quer impor. Ao circunscrever, envolver em palavrão, ofensa, grito, humor fútil, difamação, a linguagem toma partido e informa autoritariamente que a história de todos e sua compreensão geral é recusada.
Veja aqui um exemplo. Os períodos históricos tendem a produzir sua própria música, que vibra em concordância com valores universais. Seja, ou não, somente mais um traço estatístico de distinção das sociedades de massa são só ruídos que atravessam ilesos esses anos onde a maioria absoluta do povo nunca foi a um teatro, assistiu uma ópera ou a um concerto.
Felizmente livre de todo o pedantismo acadêmico e elitista e mesmo marcada pela necessidade de sobreviver economicamente se encarcerando em patrocínios, a arte continua o melhor caminho por onde passa a sensibilidade histórica. E hoje vivemos uma época em que ela não é sentida como um fenômeno próximo; dissociada da realidade parece indicar aquelas situações cansativas de quem conta a mesma história pela segunda vez.
A arte é como a gratidão, a maior de todas as farturas. Não é fábrica de tratados escrita por pedagogos mas, que tal (?), já que está dispensada a cordialidade da linguagem, por que não se interessa mais por refletir por onde anda escondida a beleza de nosso tempo.

 

Paulo Delgado é sociólogo.

 

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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