Bandung-Teerã
O Estado de S. Paulo – sábado, 8 de setembro de 2012.
A 16ª Conferência dos Países Não Alinhados, terminou em Teerã semana passada mergulhada num passado que insiste em não passar. Serve para muitas reflexões, especialmente diante dessa estranha dificuldade que inúmeros países cultivam de não irem em direção à paz e à liberdade. Mas a distorção da identidade dos regimes de governo na maioria dos países do mundo não pode ser colocada somente na conta das misérias da política. “Na origem do pitoresco há muito de preconceito e a repulsa em compreender o diferente… Persiste o aristocrático prazer em contar as distinções: corto meus cabelos, ele trança os dele; sirvo de um garfo, ele usa palitos; escrevo letras com meu lápis, ele desenha coisas incompreensíveis com um pincel; tenho ideias diretas, e as suas são curvas: você observou que ele tem horror ao movimento retilíneo, ele só é feliz se tudo vai obliquamente…. Este homem que vem em nossa direção, você deve saber se verá nele de início um Alemão, um Chinês, um Judeu ou primeiramente um homem. E decidirá o que você é, decidindo o que ele é. Faça deste lavrador chinês um gafanhoto chinês, você se tornará no mesmo instante uma rã francesa”. Lembro em retalhos as ideias do filósofo Jean Paul-Sartre diante das fotos tiradas por Henri Cartier-Bresson na China, em 1948. A época era, como hoje, de um mundo de crendices e prevenções, dividido pela política de grupos e suas consequências econômicas e sociais.
Em 1955, Sukarno, nomeado presidente vitalício da Indonésia e que a havia, dez anos antes, declarado livre do colonialismo holandês, recebeu em Bandung líderes da Ásia e da África ávidos por marcar sua independência em relação aos dois polos da Guerra Fria. Eles se autoproclamariam parte de um terceiro mundo e expandiriam nos próximos anos suas negociações para estabelecer o que ganharia o nome de Movimento dos Países Não Alinhados. Mais de meio século depois de sua institucionalização, em 1961, em Belgrado, sob as bênçãos de Zhou Enlai, da China, Nehru, da Índia, Tito, da Iugoslávia, Nasser, do Egito, e outras figuras amantes da democracia guiada, o Movimento continua afirmando sua razão de ser e não aceita ser visto no Ocidente como a festa do nonsense. Formado por 120 países, onde predominam Ásia, África, Oriente Médio e América Latina, a maioria sem poder na ONU, o grupo conseguiu o feito de arrastar para Teerã o prosaico secretário-geral da entidade sediada em Nova York.
Se não significou mais nada, o evento de Teerã foi uma sorte para o governo iraniano, que se aproveitou da presença de mandatários de uma centena de países para passar uma imagem menos isolada do seu ameaçado regime. O Irã, como se sabe, tem dificuldades de explicar o caráter pacífico de suas instalações nucleares e a linha dura de sua politica interna, especialmente em relação à liberdade de crença e opinião. Sua combalida liderança usou o encontro para amealhar certa legitimidade, já que sofre não apenas com sanções econômicas, mas também com a cada vez mais iminente concretização da ameaça de bombardeio por parte de Israel.
Tudo contribuía para a unidade da crítica ao “imperialismo” até que o recém-eleito presidente do Egito irritou o anfitrião iraniano ao prometer apoio a todos os que lutam para “superar o regime opressivo” da Síria. Como o Irã assume a secretaria geral do Movimento, em substituição ao Egito pelos próximos três anos, esperava que a Conferência constituísse numa manifestação de desagravo, da totalidade dos países presentes, pelas críticas que recebe à sua teocracia militar. Com isso, previa aumentar o constrangimento internacional e, quem sabe, diminuir as ações que minam o atual regime. O que se viu foi aumentar o embaraço da delegação Síria e dos países moderados ali presentes.
O ambiente político regional não é nada bom. O impulso febril pelo movimento, a submissão, a fé e a farda são motores misteriosos da alma dos povos do Oriente Médio. Para boicotar a Conferência, Israel, cujo direito a existência é negado pelo Irã, valendo-se do controle que tem sobre a fronteira com a Palestina, recusou conceder os vistos de passagem para Ministros de Cuba, Indonésia, Malásia e Bangladesh que pretendiam ir a Ramalláh, na Cisjordânia, para uma conferência preparatória do Comitê Palestino dos Não Alinhados. Alegou, usando a singeleza da razão prática, que estes países, como não reconhecem Israel, não podem passar por lá.
Para esquentar mais ainda o clima, foi divulgada durante a semana a notícia que os EUA duplicaram a venda de armas, e que o ano passado foi o melhor da história de seu comércio bélico, levando-o ao controle de quase 80% dos contratos mundiais. Como a mais trágica herança da guerra fria é o desequilíbrio regional e a vida em permanente motim, é ali que prosperam os senhores das armas. Assim, a Conferência de Teerã teve que engolir o fato que, atualmente, são países do Oriente Médio os maiores compradores de armamentos do mundo: caças, mísseis e helicópteros de fabricação americana suplantam em bilhões de dólares todos os seus concorrentes.
De três em três anos, a Conferências dos Países Não Alinhados é, para seus críticos, um desfile dos excluídos, desajustados, caricatos, contestadores à margem da ordem mundial. Mas tudo que não são é desalinhados, despretensiosos líderes sem ambições. Alguns dentre eles governam potências incontestáveis e que projetam poder ainda maior no futuro. Se certamente não cabe mais a classificação de “terceiro mundo” nessa nova ordem multipolar, certos países ainda mantêm como identificação comum o sentimento de serem de segunda classe no cenário mundial.
O que consola é que da lei de ferro do preconceito ninguém escapa: em algum momento, seja rico, seja pobre, sempre se é o miserável de alguém.
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.