Brasil-França: convergências, divergências
O GLOBO. Sexta-feira, 14 de março de 1997. 8. O PAÍS.
Para Jacques Chirac
PAULO DELGADO
A relação Brasil-França é tão antiga quanto o Descobrimento do Brasil: em 1505 foi registrada em um cartório de Rouen, na França, a obra “A relação autêntica”, de Binot Paulmier de Gonneville, que descreve a viagem feita, no ano anterior, pelo navio “I’Espoir”. Gonneville era um navegante francês, da Normandia. Ele se deixou pelas riquezas no Novo Mundo e organizou uma viagem com o auxílio de dois navegadores portugueses, Bastiam Moura e Diogo Coutinho, recrutados em Lisboa. Nessa obra, Gonneville faz uma descrição muito rica da nova terra e de seus habitantes. O entusiasmo de Gonneville foi tão grande que, na viagem de volta para a França, ele levou alguns índios. Um deles, de língua tupi, não só conseguiu sobreviver no ambiente europeu como também acabou casando com uma parente de Gonneville, com quem teve vários filhos.
Esse índio é certamente um dos primeiros americanos e talvez o primeiro brasileiro a ter contato com a cultura francesa, contato esse que ao longo da História do Brasil se repetiu freqüentemente, deixando marcas profundas na cultura brasileira, na nossa formação política e científica. Até a década de 1930, o Brasil, apesar de país de língua portuguesa em continente americano, mantinha relações financeiras e culturais voltadas preferencialmente para a Europa. E, se financeiramente a referência era a Inglaterra, a França era o pólo irradiador de cultura e de comércio.
Com a crise econômica de 1930, que nos obrigou a tomar empréstimos junto aos bancos americanos, o eixo financeiro se deslocou para os Estados Unidos. Mas ainda assim a França conseguiu manter seu papel de irradiador da cultura.
No Brasil, pode-se destacar como fortíssimas influências de cultura francesa – mesmo se muitas vezes tenham sido distorcidas por aqui – a cultura dos serviços públicos; a visão do Estado como responsável pelo bem-estar da população e condutor das relações interpessoais na coletividade; a concepção universalista da prestação de serviços públicos de saúde e educação; e a concepção de uma burocracia de Estado que deveria atravessar os governos e defender os interesses nacionais. Cabe lembrar que a Escola Fazendária e a Escola Nacional de Administração Pública foram criadas conforme modelos franceses e que muitos dos opositores do regime militar encontraram refúgio na França.
Nos últimos anos, com a expansão e a predominância da economia liberal, com a mudança de paradigmas culturais, e principalmente com a hegemonia americana, crescente desde o pós-guerra e acentuada com a crise da dívida brasileira na década de 80, as relações França-Brasil passaram por um período de estagnação cujas maiores vítimas são as relações comerciais bilaterais e a diminuição da influência humanista na pauta política dos diferentes segmentos da sociedade. Dois exemplos podem ilustrar essa estagnação: na década d 80 o intercâmbio comercial entre os dois países cresceu apenas 0,2% ao ano; nos dias de hoje parecemos estar muito, muito distantes das conquistas de direitos individuais, políticos e sociais apoiados nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Vivemos mesmo um momento de “erosão de direitos”. Isto torna inaceitável o uso de “cláusulas sociais” como barreiras comerciais, já que simultaneamente se perdem e se adquirem direitos de ambos os lados do oceano.
Claro que essa estagnação reflete também mudanças ocorridas na sociedade francesa que, de centro irradiador da cultura universal, vê-se atropelada pela velocidade das transformações causadas pelos avanços tecnológicos do pós-guerra.
Ainda assim, várias são as evidências e que as relações bilaterais entre o Brasil e a França representam hoje pauta importante na política internacional desses dois países.
Na área de formação de recursos de alto nível constata-se que 50% dos cerca de seis mil bolsistas brasileiros no exterior estão na França, desenvolvendo estudos principalmente nas áreas de engenharia química, engenharia de minas, geologia e telecomunicações. Os convênios científicos nas áreas de engenharia espacial, meio ambiente, agronomia, saúde, entre outros, recebem também atenção especial de ambos os países visando à construção de verdadeiros programas de cooperação, que não se limitem ao simples intercâmbio de bolsistas.
Na balança comercial, embora observe-se um superávit das exportações brasileiras de cerca de US$ 3,5 bilhões no período de 1981/1991, a tendência é de crescimento. Em 1994 o Brasil recebeu 4,6% das aplicações francesas no exterior e contavam-se 340 empresas francesas, com inúmeras subsidiárias, instaladas no Brasil. Os US$ 2,4 bilhões de capital acumulados no país, principalmente em indústrias e em instituições financeiras, geraram em 1991 cerca de 112 mil empregos diretos.
Portanto, atualmente França e Brasil se vêem num momento decisivo para as futuras relações bilaterais. Se de um lado constata-se a necessidade de investimentos no Brasil, que em vários setores da indústria está com a utilização de sua capacidade instalada próxima de 100%, de outro observa-se a possibilidade de ampliação dos investimentos oriundos da França, cuja economia se encontra em fase de expansão e onde muitos empresários consideram que o Brasil detém um dos maiores mercados potenciais no mundo. Do lado francês verifica-se um forte interesse por setores como indústria química; farmacêutica; têxtil, de papel e celulose; de equipamentos para agroindústria e beneficiamento de produtos primários; de cimento; de automobilismo; de tecnologia espacial; de tele-comunicações; de energia; e de serviços, em particular hotelaria e lazer. Do lado brasileiro, anseia-se pelo resgate do caráter multilateral das nossas relações internacionais que historicamente sempre foram diversificadas; anseia-se também pela substituição dos vícios do Estado paternalista por um Estado que garanta a defesa dos interesses nacionais e dos direitos do cidadão, virtudes da cultura francesa. O Brasil espera que a França nos auxilie na defesa de fóruns multilaterais para resolução de controvérsias econômicas. Do lado brasileiro, espera-se também que a França em suas tradicionais relações com países tropicais de outros continentes, favoreça nossas relações Sul/Sul. Do lado francês, espera-se que o Brasil possa ser a porta de entrada francesa no MERCOSUL, assim como um dia Portugal constituiu a porta de entrada brasileira na Europa. Do lado brasileiro o que se espera é que o Estado francês veja o Brasil com o mesmo otimismo que seus empresários.
Convergências de interesses são muitas mas divergências também existem e não podem ser ignoradas. A necessidade brasileira de alcançar um patamar de desenvolvimento não se dará sob o custo do sacrifício da reciprocidade nas relações internacionais. A estabilidade da moeda brasileira não deve ser o único argumento para justificar a retomada do crescimento econômico. Decisões como as que envolvem o projeto Sivam e a flagrante existência de dois Brasis – o que escala os degraus do desenvolvimento e o que desce a ladeira do obscurantismo, da violência no campo, da fome, da exploração infantil – podem representar sérios obstáculos nas relações França – Brasil. Tanto quanto o mal-estar e constrangimentos que causam a política francesa em relação aos extracomunitários, aos diversos protecionismos e à manutenção da tensão nuclear. Do mesmo modo, espera-se que, para o Governo francês, o Brasil não seja mais apenas um país “exotique”, que exporta índios como descrito por Gonneville. Para o Brasil, as relações com a França não devem se construir em cooperações fundamentadas na dominação de países d’outremer mas nas colaborações de diférents partinaires, sem qualquer exigência de internacionalismo unilateral.
PAULO DELGADO é deputado federal pelo PT de Minas Gerais e membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.